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Opinião

TDAH existe? Como analisar a alta no transtorno por uso excessivo de telas

Três pesquisas recentes associam o aumento dos sintomas de TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) ao uso excessivo de telas. Alguns sugerem até uma relação causal entre o aumento do tempo de tela e a incidência do TDAH, especialmente quando o uso é multitarefa.

Mas, como é bem comum nesse tipo de quadro clínico, fica difícil definir o TDAH como patologia mental isolada quando há um avanço gradativo de transtornos associados, especialmente depressão, ansiedade, abuso de substâncias, autismo e stress pós-traumático.

Dizer que a exposição a telas aumenta os sintomas pode sugerir uma relação entre TDAH, ambiente e interações sociais, ainda que seja combinado com determinações genéticas, fisiológicas ou neurológicas.

O fato de o TDAH estar relacionado a uma vida com múltiplas demandas e dispersão da atenção pode sugerir também que ele não seja um transtorno, mas uma neurodivergência ou um funcionamento diferente da personalidade ou do cérebro. Por que, aparentemente, o TDHA declina com a idade?

Fica a pergunta: qual seriam os traços essenciais, irredutíveis e próprios que definem o TDAH como doença?

Isso nos leva a questões históricas da psicopatologia:

1. Seriam as doenças mentais verdadeiramente doenças? Isso não quer dizer que elas não nos façam sofrer, demandem tratamento ou se reduzam a uma deficiência moral. Mas a definição de patologia exige alteração do funcionamento ou da estrutura do organismo. Portanto, só podemos classificar mudanças na atenção como doença quando descobrirmos plenamente como a atenção é afetada pelo funcionamento cerebral e neurofisiológico. Isso está longe de acontecer. Até a hipótese de que o TDAH não depende só da perturbação do cérebro pré-frontal poderia ser lida ao contrário: o excesso de decisões, telas e demandas altera nosso cérebro.

2. Certos comportamentos podem ser patológicos em um contexto, mas adaptativos em outro. Alguns autores, como Cassell (1978) separam doença (algo que o órgão tem) e enfermidade (algo que um homem tem, adoecimento como experiência social, cultural e histórica). E distinguem sinais (objetivamente percebidos por qualquer um) de sintomas (dependem da narrativa e da forma como o paciente nomeia seu sofrimento). Isso poderia explicar a diferença de incidência do TDAH em diferentes culturas e países. Assim, a resposta aos psicoestimulantes é um efeito terapêutico ou uma adaptação do sujeito ao mundo que espera concentração maior que o sujeito pode dar?

3. Quantos diagnósticos são pura contagem de sintomas? O TDHA está na seção dos transtornos do neurodesenvolvimento do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), ou seja, envolve o neurológico e o social. O DSM definição de sofrimento significativo, funcionamento mental ou dificuldades sociais a partir de convenções e categorias operacionais —que variam de acordo com classe social, raça, gênero e nível educacional. Então, fica a pergunta: quantos diagnósticos de TDAH são realmente baseados em ferramentas formais, como Conners, CBCL, Escala TDAH-2002, WISC-IV, Teste de Desempenho Escolar ou BPA, e quantos são por contagem de sintomas descritos pelo DSM?

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4. O termo "transtorno", em vez de "doença", vem da falta de demarcação precisa. Não existem marcadores biológicos consistentes, testagem confiável sobre alterações químicas, fisiológicas ou neurofuncionais ou causa orgânica para a maior parte das síndromes mentais. Os diagnósticos usam como categorias o convencionalismo operacional: regularidade estatística e de signos patológicos, e não causa e desenvolvimento de uma síndrome. Será que esta é uma boa hipótese para 31% a 53% dos diagnósticos de TDAH em adultos serem falsos positivos?

5. Isso explica a alta comorbidade entre os transtornos. No resto da medicina, as doenças geralmente decorrem umas das outras. No TDHA, deduz-se que as alterações neurocerebrais são efeito do transtorno, não a causa. E existem esses níveis de coincidência com outros quadros:

  • 52% com problemas de conduta
  • 33% com transtornos de ansiedade
  • 17% com depressão
  • 14% como transtorno do espectro autista (TEA)
  • 1% com síndrome de Tourette

A definição do transtorno se torna difícil também por falta de consistência histórica. Está mais para o que o filósofo da ciência Ian Hacking chama de nominalismo dinâmico, ou seja, o poder da linguagem de estabelecer regras de ação e descrições que "criam" entidades. Usamos o realismo de entidades para descrever formas codificadas de sofrimento.

As primeiras descrições do TDH foram feitas quando a escolarização se tornava um processo compulsório e de massa nas sociedades europeias, o que exigia maior nível de concentração, disciplina e quietude do corpo.

Em 1798, o médico Crichton descreveu assim uma doença chamada Atentio Vulubilis, "mais frequente em crianças que nos adultos e em mulheres, menos atentas por natureza":

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  • Descrição: "distraído por qualquer coisa, até mesmo pela imaginação da própria pessoa, que se esforça mais para completar as tarefas, é inconstante, descuidado, o trabalho tem muitos erros e é geralmente desorganizado"
  • Causa: "fibras demasiado moles ou demasiado ágeis que diminuem a força necessária para a atenção constante"
  • Tratamento: "fricção, banhos frios, pó de aço, cinchona, águas minerais, passeios a cavalo e exercícios de ginástica"
  • Prevenção: distrações devem ser removidas, ficar sozinho numa sala escura ajudará.

Em 1902, o médico britânico George Still descreveu pela primeira vez sintomas parecidos com o TDAH e observou crianças com problemas de atenção, impulsividade e hiperatividade decorrentes do que chamou de "defeito de controle moral" causado por fatores hereditários ou lesões cerebrais.

Nos anos 1940, o educador David P. Weikart buscou entender porque tantas crianças não prestavam atenção às aulas, sem se perguntar se a escola ou o método de ensino tinha algo que ver com isso.

E muitos dizem que a encefalite letárgica, nos anos 1920, a disfunção cerebral mínima, nos anos 1960, e a dislexia, nos anos, 1970 já eram o atual TDHA.

Foi em 1968 que o transtorno de "reação hipercinética" foi incluído no DSM 2 e passou a ser a primeira aparição contemporânea do TDHA.

Isso não significa que o TDHA não exista

Mas é preciso atenção ao que significa "existir" quando se trata de doenças, enfermidades, transtornos, sintomas e formas de sofrimento mental.

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Por isso, quando Eisenberg declarou, pouco antes de morrer, que o TDHA era uma doença fictícia, não quis dizer uma falsa doença. Quis salientar que transtorno não é doença, que descoberta não é invenção e fictícia não quer dizer inexistente.

O risco é que "empresários da saúde mental" aparecem para agenciar o TDAH e vende-se alívio produzindo diagnósticos e oferecendo uma explicação global para dificuldades do sujeito. Falei disso em outra coluna.

É como se toda a complexidade de determinantes ficasse reduzida ao nome. Como se dominássemos a coisa, nomeando-a. Devolvemos ao 'cliente' um lugar de pertencimento.

Para quem sofre com inadequações, insuficiências e impotências, isso traz uma estranha satisfação de sentir-se parte de um sofrimento coletivo.

Localizar a causa livra o sujeito da culpa, solidão e vergonha e traz uma leitura moral e estigmatizando dos sintomas psíquicos, que é parte da estratégia do "empresário da saúde mental".

Por fim, as redes sociais tornaram-se o meio ideal para multiplicar este tipo de negócio que empilha artigos científicos e especialista para propagar um tipo de monetização da miséria neurótica.

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Fontes citadas:

Zhou, Y., Jiang, X., Wang, R. et al (2023). The relationship between screen time and attention deficit/hyperactivity disorder in Chinese preschool children under the multichild policy: a cross-sectional survey. BMC Pediatr 23, 361

Meng Zhuo, Ao Bo, Wang Wei, Niu Tongtong, Chen Yanan, Ma Xiaoqing, Huang Youliang (2024). Relationships between screen time and childhood attention deficit hyperactivity disorder: a Mendelian randomization study. Frontiers in Psychiatry, 15

Thorell, L.B., Burén, J., Ström Wiman, J. et al. (2024) Longitudinal associations between digital media use and ADHD symptoms in children and adolescents: a systematic literature review. Eur Child Adolesc Psychiatry 33, 2503-2526

Faraone, S. V., Perlis, R. H., Doyle, A. E., Smoller, J. W., Goralnick, J. J., Holmgren, M. A., & Sklar, P. (2005) "Molecular genetics of attention-deficit/hyperactivity disorder." Biological Psychiatry, 57(11), 1313-1323

Faraone, S. V., Biederman, J., & Mick, E. (2006) "The age-dependent decline of attention deficit hyperactivity disorder: A meta-analysis of follow-up studies." Psychological Medicine, 36(2), 159-165

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Castellanos, F. X., & Proal, E. (2012) "Large-scale brain systems in ADHD: Beyond the prefrontal-striatal model." Trends in Cognitive Sciences, 16(1), 17-26.

Polanczyk, G., de Lima, M. S., Horta, B. L., Biederman, J., & Rohde, L. A. (2007) "The worldwide prevalence of ADHD: A systematic review and metaregression analysis." American Journal of Psychiatry, 164(6), 942-948

Spencer, T. J., Brown, A., Seidman, L. J., Valera, E. M., Makris, N., Lomedico, A., & Biederman, J. (2014). "Effect of psychostimulants on brain structure and function in ADHD: A qualitative literature review of MRI-based neuroimaging studies." Journal of Clinical Psychiatry, 75(8), e915-e930.

Associação Americana de Psiquiatria. (2014). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (5ª ed.). Porto Alegre: Artmed. pp. 59-66.

Arnsten, A. F. T. (2009). "The neurobiology of ADHD." Nature Reviews Neuroscience, 10(2), 67-76.

Joseph Knobel Freud (2014) Sobre O TDAH: Transtorno ou invenção? Ciência e Cultura. Cienc. Cult. vol.66 no.1 São Paulo 2014.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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