Flip: youtubers convivem com dinossauros acadêmicos, e isso é bom
Quando participei da Bienal do Livro em São Paulo, pela primeira vez, em 2016, fiquei espantado com o fato de que todos os grandes lançamentos e as mesas de referências eram compostas por youtubers. O público infantil e juvenil parecia ter vindo para ficar e, com ele, a cultura digital e o ebook. O formato livro ficaria reservado para os antigos que frequentariam a Flip como uma espécie de balneário de aposentados falando do passado.
Voltando da Flip este ano e tendo participado das Bienais de São Paulo, Rio e Salvador percebo que não poderia ter estado mais enganado.
Continuamos a ver grandes youtubers, como Felipe Neto ("Como enfrentar o Ódio?"), uma massa de sucessos juvenis e infantis, mas agora eles convivem com os dinossauros acadêmicos e pterodátilos digitais.
Ao mesmo tempo, percebe-se um maior entranhamento da literatura com temas sociais e políticos, mas o discurso da disputa pelos lugares parece ter se arrefecido.
Isso acontece tanto porque as mesas hoje estão mais diversificadas em termos de raça, classe e gênero, quanto pelo fato de que os debates se arborizaram de fato, na academia, nas instituições e na vida real.
Nas mesas que participei, com Tati Bernardi ("Desculpe o Transtorno"), Tatiana Paranaguá ("Arte de Amar"), Evandro Cruz e Amara Moira ("Ser Brasileiro?"), o nível de lacração e declarações lacanianas (feitas para o corte) foi baixo.
Senti de novo aquele sentimento bom de poder contrapor argumentos sem ser arrastado para polêmicas de ocasião.
Em regra geral, a denunciação convivia com a enunciação, e os enunciados circulavam sem tanta marcação de propriedade.
Gostei quando Geni Nunes falou das caravelas epistêmicas e de que "Humano é tão inventado quanto Brasil", pensando na inexistência de termos indígenas para o conceito de "humano" em vez de simplesmente gente ou pessoa.
Gostei quanto ela se referiu ao nomadismo como primeiro pecado e que disso se se deduz a crítica jesuítica da monogamia.
Por isso, a recepção de sua mãe à sua orientação sexual poder ser elevada à dignidade de um novo universal, em sentido lacaniano: Eu não quero entrar no céu onde você não possa ir.
Escutei o Simas, o curador cambono, contar de seu gosto pelas histórias do Rio nas conversas sobre João do Rio. Concordei com ele que personagens não são tipos sociais, e que afinal todas as famílias têm história, ainda que algumas sejam mais coletivas que outras.
Escrevendo este relato lembrei ainda que: "Crônica, se não for aguda é crônica".
As Flips passadas eram academicistas, agora a escolha de João do Rio é uma retomada da anti-Flip.
Se o Rio Janeiro foi fundado para espantar franceses, depois quis se tornar parte da França, para agora não termos nem mais sobreviventes, mas "sobras viventes".
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Quero receberEstamos em uma encruzilhada com a nossa dimensão civilizacional, entre a festa da periferia que é o centro e os bulevares da periferia do centro, que não levam a lugar nenhum.
O centro é o lugar onde você está, pois o centro é onde está a encruzilhada.
Essa foi também uma das ideias circulantes na mesa de Silvana Tavana ("Ressuscitar Mamutes"), um romance entre luto e gravidez, narrado por uma criança de 11 anos Mariana Carrara ("A Árvore mais Triste do Mundo"), Karla Madeira ("Tudo é Rio").
Para a primeira, a memória é um elemute, cruzamento de elefantes com mamutes.
Para a segunda, a encruzilhada passa pela genealogia dos personagens, onde sempre se alterna o amor, presente ou ausente.
Para o terceiro, a encruzilhada é entre passado e presente, o perdão é lembrar o suficientemente para não esquecer, e esquecer, mas não a ponto de que aquilo volte a se repetir.
Os dois convidados internacionais mais proeminentes, Édouard Louis ("História da Violência") e Mohamed Sarr ("A Mais Recôndita Memória dos Homens"), trouxeram testemunhos pungentes sobre a violência, mas sobretudo a potência da literatura em transformar a violência em outra coisa: memória, história, perdão e até mesmo justiça.
Ao que tudo indica a distância geracional, racial e digital, que nos impedia de ver os verdadeiros cruzamentos, parece desenhar-se sob a neblina.
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