Tecnologia 6 x Vida 1: em vez de ganhar tempo, ganhamos 'shit jobs'
No final dos anos 1980, tive aula de psicologia das organizações com o grande Sigmar Malvezzi, que nos levou a discutir um livro chamado "Robô: ruim com ele pior sem ele".
Estávamos em plena febre da economia globalizada, da revolução cognitiva e da descoberta das incríveis novas medicações para os transtornos mentais. O muro de Berlim caiu em 1989, dando a impressão que havíamos superado para sempre uma leitura de mundo dual da guerra fria.
No livro em questão, Paulo Feldmann avaliava o impacto da automação em grandes fábricas de automóveis e intuía já um problema, que era a desocupação massiva da mão de obra.
Pressentia-se que em um sistema cada vez mais nômade de produção e consumo, com plantas abrindo e fechando em diferentes países, com direitos trabalhistas e encargos fiscais muito díspares, enfrentaríamos um problema inédito para a humanidade: a disponibilidade de tempo.
Esse novo problema seria causado pela implementação de políticas de renda mínima —das quais Eduardo Suplicy era o nosso advogado mor— e pelo fato de que as novas tecnologias, de corte computacional, nos poupariam do trabalho pouco criativo, mecânico e de baixa relevância.
O resultado previsto é que a equalização relativa dos salários produziria uma expansão da classe média consumidora. Isso traria o desafio de tornar o lazer uma experiência cada vez mais realizadora, do ponto de vista da vida vivida fora do trabalho.
Para alguns, o trabalho continuaria a ser o principal encargo e a fonte de preocupação na vida, mas isso seria um efeito residual da transição.
Na verdade, uma cultura da educação continuada abriria cada vez mais empregos para quem tivesse mais qualificações, particularmente em recursos de informática.
Os psicanalistas, acostumados com os impasses e contradições de nossas demandas, dizem: cuidados com o que você pede, porque, às vezes, isso pode se realizar de modo inesperadamente diferente do que você pretendia.
O dilema dos Rolling Stones: ou "I can get no satisfaction" (não consigo encontrar satisfação) ou "you can't always get what you want, but if you try hard sometimes, you get what you need" (Você nem sempre pode ter o que quer, mas se tentar forte, algumas vezes vai encontrar o que precisa).
Ou seja, em vez do tempo livre para criar, temos o tempo livre do desemprego. Em vez do tempo para trabalho vivo, temos o tempo ocupado dos "shit jobs". Em vez do tempo recreativo com a família e o cuidado de si, o trabalho doméstico sem remuneração ou reconhecimento.
Tudo isso regado a tecnologia por todos os lados.
Hoje, passamos da guerra fria para a guerra quente. A revolução cognitiva deu em fake news. E as novas medicações curam menos do que curavam há trinta anos .
Trinta anos depois, vivemos várias ondas tecnológicas: dos antigos DVDs às intermináveis discussões sobre ter ou não um celular; da internet sem banda larga aos algoritmos do ódio; do excesso do uso de telas à inteligência artificial. Foram inúmeros processos também no mundo do trabalho: reengenharias, reestruturações, downsizings, startups e empreendedorismos de todo tipo.
O limite desta aceleração de ganhos só pode ser o tamanho e a extensão de uma vida. O corpo é nossa fronteira final.
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Quero receberEsse limite parece ter chegado para vida que estamos levando, mesmo os mais qualificados e em melhores condições de educação e renda.
Resultado: os que estão empregados vivem uma vida de sobrecarga, temor constante com a própria empregabilidade, jornadas de trabalho cada vez maiores.
Ou seja, a rarefação da oportunidade de ter um trabalho produziu uma espécie de extorsão.
A regra local da redução de custos e a regra geral da austeridade em conjunto não resultaram em mais tempo de "vida boa". Aumentamos a demanda, as tarefas e a carga de trabalho, sem aumento proporcional no salário.
Se você não é um super-herói, com super-talentos e super-capacidade de auto-organização, a porta da rua é serventia da casa.
A disseminação de uma vida integrada a novas tecnologias, criou uma cultura onde mais "trabalho informal" foi transferido de três formas:
- Para o consumidor, a cultura do "não custa nada". Com ela, contrariamos a regra de Milton Freedman de que "não há almoço grátis". Passamos a fazer nosso próprio depósito no banco (em caixas automático), depois passamos a preencher formulários, tokens e senhas e depois ainda nos tornamos fornecedores gratuitos de dados.
- Para o trabalhador, a cultura da "produtividade generalizada". Esteja permanentemente atento a sua empregabilidade, não pare de estudar, se aperfeiçoar, fazer cursos, práticas e disciplinas que aumentem e conservem sua "produtividade".
- Para o semi-desempregado, aposentado, informal ou dependente a cultura da precariedade. Nela, é tudo de graça para a empresa. O custo e o risco correm por conta do próprio empreendedor. Uma vida incapaz de perspectivar futuro, articular biograficamente o passado ou situar-se no presente, que seja de forma "remediada" como se dizia antigamente.
Resultado do Resultado: crise global de saúde mental, incapacidade global de agir em relação à crise climática, impossibilidade global de pensar uma transformação efetiva da situação.
Saber se a tecnologia é causa ou consequência deste processo é uma falsa questão. É o mesmo que perguntar se é ela ou os estrangeiros que tiram nosso trabalho.
O problema central é como distribuir mais equitativamente os ganhos de tempo gerados pela tecnologia?
Chegou a hora de "olharmos para os fatos", como dizem os evidencialistas. A única forma de reduzir a desigualdade entre os que estão morrendo por excesso de trabalho e os que estão sendo mortos pela falta de trabalho é distribuir mais e melhor o tempo trabalho.
Por isso a extinção da jornada de trabalho 6 por 1 deve ser apenas o início e o marco simbólico de uma redução geral das horas de trabalho per-capta.
Na Alemanha trabalha-se apenas quatro dias por semana. Por que não seguimos, finalmente, o exemplo dos "países mais avançados'"?
De nossa parte, entendemos que a atual crise global de saúde mental não será enfrentada se não olharmos para os prejuízos causados por extensas jornadas de trabalho (somado às dificuldades de mobilidade urbana) em termos de pertencimento familiar, solidão, déficit narrativo, redução da escuta, ruptura da rede de proteção e cuidado.
Vidas em estrutura de empresa são nocivas, particularmente para profissionais liberais, autônomos, os que vendem sua força de trabalho "por projeto", os "pejotizados", os trabalhadores em plataforma. Porque nelas o tempo de trabalho corre por conta do empreendedor de si mesmo.
Some-se a isso os prejuízos de uma vida neoliberal em termos de depressão, ansiedade e burnout, e chegamos ao argumento incontornável para uma pauta progressiva de redução de jornada de trabalho.
Tudo isso baseado no pressuposto da livre vontade: se você quer ganhar mais, trabalhe por mais tempo.
Não espere, mais uma vez, que a tecnologia pague a conta, para o bem e para o mal.
Não é ela que faz você trabalhar mais ou menos, mas a distribuição desigual de seus efeitos positivos e negativos, quando se olha para o conjunto da população.
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