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Opinião

Neutralidade suspeita: Google decide quem morre e vive na arena das tags

Quando você fica em dúvida sobre alguma coisa, o procedimento mais simples é "dar um Google". Assim como antigamente o dicionário era o 'pai dos burros', hoje o Google assumiu um lugar inquestionável como fonte de informação básica.

Criou até o sentimento de que é uma amostra neutra do senso comum ou consenso sobre um determinado tema. Ele não evita a diversidade de opiniões, ofertas e leituras, apenas hierarquiza a ordem de sua apresentação.

Esse desvio de neutralidade pode ser relativamente compensado por pesquisas mais específicas e buscas mais qualificadas, mas na prática nossa, quando a questão não é crucial, nos contentamos com o primeiro ou segundo item gerado pelo sistema de buscas.

É possível que as pessoas não saibam —ou não tenham plena consciência das implicações— de que este primeiro ou segundo item não é gerado por critério de qualidade ou mesmo de quantidade de buscas, mas simplesmente pelo "leilão" promovido pelo Google para colocar um determinado site em primeiro lugar.

Podemos imaginar que estamos mais ou menos prevenidos, pois isso segue as regras elementares do marketing: se eu busco "loja de sapatos", posso encontrar um anúncio pago por uma grande cadeia lojas —eventualmente mais próxima de onde moro, eventualmente dirigida ao meu "perfil de compras", assinalado por meu histórico.

Mas isso é diferente de taggear, por exemplo, pessoas, cujo interesse ou desejo de estar em primeiro ou último na lista não está a ser considerado.

Há algo de substancialmente diferente entre taguear coisas ou marcas e taguear pessoas? É interessante que esta pergunta seja relativamente complexa quando nos referimos ao nosso nome próprio e quando nos referimos a nossa própria imagem.

Se você pegar a fotografia de alguém e usar isso para vender sabonetes, estamos prontos para levantar o cartão vermelho e dizer: isso não é correto.

Intuímos que o uso da imagem deve reverter em algum benefício para seu "usuário de base", ou seja, seu "proprietário".

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Qualquer um pode, por exemplo, fazer uma oferta pelo uso do nome "Christian Dunker", hoje cotado mais ou menos a R$ 2,90 o clique, de tal maneira que toda vez que alguém colocar este nome no Google aparecerá no primeiro lugar seu curso de psicologia, as suas colunas em jornal ou o seu canal Youtube de variedades —e não as minhas.

Esse desvio de neutralidade presumida já acontece hoje quando o assunto é política.

Se alguém dá um Google sobre significantes como "democracia", "comunismo" ou "Stalin" não será enviado a um site da Boitempo, ao canal Meteoro ou mesmo ao Henry Bugalho, mas ao Brasil Paralelo, simplesmente porque ele paga por isso.

Quando meu amigo Vladimir Safatle aponta, com razão, que a esquerda não está mais falando sua própria língua, assumindo termos e gramáticas que não são os seus, é preciso observar que as próprias palavras chaves da esquerda podem estar sendo literalmente compradas pela direita.

O maior e mais caro esforço de coalização e convergência em torno de uma pauta ou demanda, representada por seus significantes flutuantes, pode estar sendo simplesmente invertido —não para todos, mas para aqueles que não tem uma expertise formada na matéria.

Ou seja, são justamente as "pessoas pêndulo", para fazer referência ao sistema eleitoral americano, que estão sendo submetidas mais fortemente ao desvio padrão da neutralidade suposta.

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Enquanto isso, aqueles que possuem letramento mais avançado fazem pesquisas "mais qualificadas", que provavelmente reverberam as mensagens redundantes de suas próprias bolhas.

Entre os ameríndios brasileiros, existem dois sistemas de nomeação.

Entre os tupi-guarani, vigora o sistema de estoque, ou seja, existem um número fixo de nomes disponíveis. Enquanto alguém não morre e torna disponível seu próprio nome, a pessoa deve se contentar em ser chamada por uma perífrase do tipo: filho de X, neto de Z, sobrinho de W.

Já no sistema Jê admite a nomeação indeterminada, inclusive parasitando nomes de outras etnias e até mesmo dos brancos. Em contrapartida, grandes feitos ou eventos podem acrescentar mais nomes ao nome de base. Por exemplo, matador de A, conquistador de B ou aquele que teve o sonho premonitório C.

Ser conhecido como filho de... traz o prejuízo da minoridade, mas também o benefício da proteção "natural" contra predadores ou inimigos.

Ser conhecido pelos seus feitos cria, no outro sistema, um reconhecimento que agrega autoridade a quem porta seus "nomes títulos".

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Estes dois sistemas se combinam na lógica Google da neutralidade suspeita.

Nosso histórico conta para o aumento natural da "popularidade" ou da "notabilidade", mas o estoque de nomes e sua hierarquia são definidos e administrados pela big tech.

A Google decide quem morre e quem vive na arena do tagueamento.

Este sistema acrescenta algo impensável tanto para ameríndios quanto para os brancos mercantilizados, ou seja, o comércio dos nomes próprios sem que o seu "proprietário" possa ter qualquer benefício ou reconhecimento por isso.

Por isso, acredito que a prática do empreitamento de nomes próprios, assim como o impedimento ao direito de esquecimento e as campanhas de destruição de reputação, se tornarão cedo ou tarde o que são: algo entre o crime e espoliação indevida de valor.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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