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Opinião

Disclamer: por que somos tão facilmente enganados por versões tipificadas?

Em seu recente comentário sobre a série "Disclaimer", dirigida por Alfonso Cuarón, Francisco Bosco chamou a atenção pela maneira como os homens são representados como tolos, zumbis ou violentos. Acompanho suas observações sobre o Festival de Besteiras que Assolam a Masculinidade* e como a infantilidade e inanidade masculinas tem sido objeto de um escrutínio necessário e um tanto adiado.

Achei particularmente interessante que 24% dos americanos que não se situam em nenhum grupo identitário, justamente porque são homens brancos. Como se este sub-grupo fosse objeto de uma curiosa suspensão do direito à identidade, pois é o padrão neurotípico —que define o genérico agente da opressão.

Sobre este grau zero na escala de confiança, não aplicamos nenhum desvio padrão, apenas a lei dura e crua. Outros grupos recebem abono ou deságio na escala progressista ou conservadora, de confiança na palavra, e mais especificamente da palavra que denuncia.

No cenário do anonimato e da segregação digital, emerge o fenômeno da denunciação autoperformativa. Ou seja, a união entre a certeza desubjetivada de quem acusa e a adesão performativa de quem ecoa, a "realidade" performativa e "verdade" denunciada.

É a conjunção entre a emergência do sofrimento suprimido historicamente na linguagem, como descrito por Lélia Gonzalez**, e a noção de performativo desenvolvida pela filosofia da linguagem, a partir de John Austin***, para designar o poder que as palavras tem de fazer coisas, criar mundos e transformar estados mentais.

Isso aparece na série baseada na novela de Renée Knight e estrelada por Cate Blanchet. A trama gira em torno de um incidente, ocorrido vinte aos antes, quando a protagonista e seu marido estavam na Itália com o filho pequeno. O marido, "herdeiro" e anódino, precisa regressar a Londres.

*** Contém spoilers a partir daqui ***

O incidente tem duas versões. Nas duas, Jonathan morre afogado, sem que Cate esboce qualquer reação — o que é objeto de massacre de opinião.

A primeira foi escrita pela mãe de Jonathan e é parte da elaboração de seu luto melancólico: Cate teria seduzido o rapaz em uma noite tórrida de sexo, atestada por fotos comprometedoras, tiradas durante um jogo erótico promovido por ela. No dia seguinte, movido pelos efeitos de apaixonamento, ele arrisca sua vida, heroicamente, para salvar Nicholas, o filho dela, que foi levado pela correnteza para o alto mar. Ele salva o menino, mas se afoga no processo. Cate, ao recuperar seu filho, permanece calada e não avisa às pessoas que Jonathan não tinha voltado.

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A segunda é dada pela protagonista e só aparece no final, quando um livro denúncia já destruiu seu casamento, sua reputação e sua relação com o filho, e depois depois de passar os episódios tentando apresentar seu relato e sendo silenciada pelos colegas de trabalho e pela família.

Depois de um dia de sol, sem seu marido que voltara para Londres, ela toma um copo de vinho experimentando uma curiosa felicidade solitária. Ela esquece a chave na fechadura da porta, o que permite que Jonathan invada o quarto e a estupre sob o cruel testemunho do filho Nicholas. Ela tira fotos sensuais, mas é porque ele a ameaça com um canivete. Ela não se manifesta quando Jonathan se perde em alto mar, mas é porque ele a estuprou, não porque está com vergonha de deixar viva uma testemunha de sua lascívia luxuriosa.

Não se trata de duas testemunhas que presenciam o mesmo fato, produzindo narrativas divergentes como em Rashomon (1950), de Akira Kurosawa. Nem de duas testemunhas com pontos de vista diferentes, como em Anatomia de uma Queda (2023), de Justine Triet.

As duas versões de "Disclaimer" são completamente heterogêneas sobre a realidade.

A "ficção baseada em fatos reais" torna-se ainda mais real pelo fato de que a vítima não consegue, quase até o fim, se defender. Quando ela tenta fazê-lo, movida pelo sabor da injustiça e pelo calor dos acontecimentos, isso só comprova, performativamente, que ela é culpada.

Isso ocorre diante de nossos olhos, com os interesses oportunistas e inescrupulosos de seus competidores no trabalho interessados em destruir sua carreira.

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Na denunciação autoperformativa, nós agimos como uma variação do fetichista freudiano que "sabe muito bem que aquilo não é (toda) a verdade, mas continua a agir como se fosse".

Se ela não se defende, é porque a acusação é verdadeira. E não porque nós, os julgadores representados no filme pelos homens idiotas, zumbis e violentos, estamos produzindo e reproduzindo as condições performativas de seu silenciamento.

Assim, podemos enganar nosso superego gozando vingativamente, simplesmente porque em um mundo estruturalmente injusto a acusação de injustiça é sempre verdadeira, independente dos culpados reais.

A primeira versão é produzida por uma mãe que não consegue admitir que seu filho era um estuprador, o que atrapalha o progresso do luto e explica sua evasão culposa do casamento, tornando o marido um zumbi.

Ela deixa na gaveta um livro com esta solução ficcional, para o que teria acontecido nas circunstâncias do afogamento do filho. É o seu marido que encontra o relato e decide vingar-se pela dupla perda imposta, supostamente por Cate: do filho e da esposa.

Temos aqui o protótipo do homem ressentido pela destruição que uma mulher teria causado em sua vida, ainda que ele desloque esta culpa para a mulher errada.

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A segunda versão é produzida em primeira pessoa por uma mulher, mas que escolhe esconder um fragmento de sua própria história.

Até que ponto este silêncio atrapalhou a relação com o marido, criando um hiato na intimidade do casal? Até que ponto sua relação com o próprio filho ficou corrompida pela culpa residual pelo estupro sofrido? Até que ponto o silêncio da vítima a incrimina? Até que ponto o desejo de contar sua versão da história é recebido apenas como uma mentira previsível, deflacionada pelo fato de que ela é rica, saudável e bela, ao passo que a escritora do livro-denúncia é pobre, doente e feia?

O que escapa ao público é que a segunda versão é também uma versão. Por que somos tão facilmente persuadidos de que só porque ela fala por último sua fala é mais verdadeira?

Uma pista para entender isso está nos pequenos detalhes incongruentes que deixamos passar. Por exemplo, o telefonema da mãe da ex-namorada de Jonathan denunciando que ele violara sua filha, por isso ela voltara da Itália antes.

Isso revira completamente a narrativa, pois não se trata mais dos homens ineptos, ingratos ou malvados contra as mulheres. Nem a vingança dos homens ressentidos que se reúnem contra a mãe sexualizada. Mas do confronto entre mães e sexualidade: a mãe de Nicholas, a mãe de Jonathan e a mãe da namorada de Jonathan.

As inversões propostas pela série, tem uma só enunciação: "Por que somos tão facilmente enganados por identificações com personagens tipificados?"

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Chegamos assim ao paradoxo da força e fragilidade da acusação autoperformativa.

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* Revisão paródica atualizada do Festival de Besteira que Assola o País (FEBEAPÁ), título do primeiro livro de uma série de três do autor brasileiro Sérgio Porto, cujo primeiro volume foi publicado originalmente em 1966 e que reúne os textos que ele publicara com o heterônimo de Stanislaw Ponte Preta, criado justamente para escrever as crônicas que revelavam com humor as coisas que ocorriam após o Golpe Militar de 1964, e eram publicadas no jornal Última Hora.

** Gonzalez, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. In: Holanda, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

*** Austin, J. (1990) Quando Dizer é Fazer. Porto Alegre: Artes Médicas.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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