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Opinião

Na Serra da Capivara, entendi o efeito da ciência na cultura e nas pessoas

Voltei de minha estada no Parque Nacional da Serra da Capivara com várias lições sobre a relação entre ciência e cultura. Quem pensa que ciência é laboratório e muros excludentes deveria olhar para os efeitos de longo prazo da experiência da pesquisadora Niède Guidon, cuja vida foi recentemente abordada no excelente podcast de Kelly Spinelli.

Professora e arqueóloga franco-brasileira nascida em 1959, ela estuda desde 1973 esta região onde foram encontrados mais de 600 sítios arqueológicos, o maior acervo mundial de pinturas rupestres.

Ela argumenta que artefatos achados há pelo menos 30 mil anos atestam que a ocupação da América do Sul não deriva da migração desde a Sibéria, pelo estrito de Behring, mas provavelmente de expedições vindas da África.

Muitos criticam esta teoria contestando os métodos de datação. O método do carbono 14 se mostra irregular depois dos 30 mil anos, falta confirmação genética e as evidências apresentadas, como pedras lapidadas, resíduos de fogueiras e traços de enterramento ritual, não seriam artefatos (feitos pelo homem), mas geofatos (acidentes causados pela natureza).

O que mais me chamou a atenção foi a disparidade entre a controvérsia arqueológica e a vaguidade das hipóteses para ler as imagens pintadas em vermelho, azul ou branco.

Elas retratam figuras antropomórficas em três situações típicas: caça, dança e sexo.

Na medida que avançamos na linha do tempo rumo aos dias de hoje, percebemos a passagem de imagens para grafemas. Um importante marcador é o contador, ou seja, um agrupamento de traços verticais alinhados que parecem indicar número ou extensão.

Os traços gradualmente são incorporados —quer como uma espécie de vestimenta ou preenchimento dos torços, quer para a formação de grades que funcionam como escadas humanas, como se uma pessoa estivesse em cima da outra tentando alcançar os céus ou as formações rochosas mais elevadas como a Pedra Furada.

Para um estudioso da psicanálise, a persistência do alinhamento de traços leva a pensar na teoria do traço unário, reflexão lacaniana sobre a origem do número na formação da identidade e na escrita humana.

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Assim qualquer estudioso das mitologias americanas associa as escadas às diferentes versões do mito do rapto da lua pelo sol, presente entre craôs, timbiras*, apinagés ou caiapós.

Mas, assim como na ciência, há sempre recomeços e novos fins na vida.

Por isso, para entender os efeitos de Niéde é preciso ir além do Museu do Homem Americano, do Museu da Natureza e dos parques que ela ergueu. Ela fez o que fez ao se aproximar das pessoas à sua volta, fossem quais fossem.

Por exemplo, Sebastiana Torres da Silva, sanfoneira, conheceu Niéde, arqueóloga e pesquisadora, em 1978.

Sebastiana, descendente de uma indígena aprisionada em troca dos dentes de cachorro, fugiu da seca de Tamburi de Sucuri e fez roça em Raimundo Nonato desde os 6 anos. Foi salva pela sanfona e por um "rádio de píla" onde ouvia Luiz Gonzaga.

Sozinha ela é capaz de extrair 600 quilos de mandioca, fazer a farinha e peneirar a massa para 18 sacos. Liderou uma banda de forró com mais de dez pessoas.

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Humildade e coração sem maldade, foi tudo o que Deus me deu na vida. Vai ver que foi isso que ela viu em mim, quando veio me dar um beijo, do nada, depois de me ver tocar sanfona pela primeira vez.

Sobre os escritos rupestres, Sebastiana desfila sua sabedoria: "Se estão ali é porque eles queriam dizer alguma coisa para nós".

Por dois anos, dormiu na rua com o marido e oito filhos —junto ao muro, para aparar a sombra.

Filtrava mel, colhia e quebrava castanha. Niéde lhe deu uma sanfona e organizou suas apresentações para turistas e nas festas regionais, durante quarenta anos.

Niéde pagava professores para ensinar aos pobres, pois, para ela, a construção dos museus devia acompanhar a escolarização das crianças. Desta forma, forneceu suporte alimentar e amparo para uma rede comunitária.

Aos 48 anos, Sebastiana passou a viajar 26 quilômetros, todo dia, para aprender a ler e escrever. Isso ajudava na composição das modas e cantigas sertanejas. Ler os enigmas das letras foi só o primeiro capítulo, pois segundo Sebastiana:

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Niéde me ensinou a ser mulher. Sou do tempo em que mulher não tinha voz. Ela não deixava uma mosca assentar em mim que ela vinha cortar as asas. Criou sete filhos, deu uma casa para cada um.

Duas filhas quase se formaram professoras. Não tem um canal de televisão pelo qual não passou. Casou de verdade, de véu e grinalda, pouco antes dele morrer.

Primeiro veio a covid, que cancelou 19 apresentações. Daí, a depressão que não deixava-a voltar para a sanfona. Em seguida, seu filho foi atropelado por uma Hilux e ficou hospitalizado mais de uma mês em Teresina. O irmão não quis mais tocar na banda. Arruinou o coração e as finanças da família.

Não trabalho correndo como quando era nova, vou devagarinho, mas faço a mesma coisa. Moço, de onde eu tirei tanta força? Essa força não é minha.

Depois de tudo, a filha ficou com depressão. Não sabe dizer se foi a perda do pai, o acidente do irmão ou a tristeza da mãe. Mas, quando o médico disse que Sebastiana estava com depressão, ela pensou que a filha também podia ter "aquilo".

Lembrou que desde pequena teve a cabeça meio fraca, ouvia vozes e via vultos. Está melhorando agora com os remédios.

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Sebastiana estava cansada da roça, da sanfona, de parir... de marido.

Niéde, hoje com 92 anos, anda com dificuldade depois da queda.

Ambas saíram juntas da depressão desde que Sebastiana lembrou de um sonho há muito esquecido: sempre quis ser batizada. Ela tinha ficado em cima do muro: voltava à festa da sanfona ou se batizava. Evangélica, teve que parar com aquelas músicas de imoralidade, bundinha para cá, bundinha pra lá.

"Sanfoneira Sebastiana" é o nome do canal dela, com 25 mil inscritos, e faz parte da memória viva musical do Piauí. Com as mãos tudo furada ela mesma faz as gravações do canal.

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* A lua deixa cair uma pena flamejante de pica pau, gerando um incêndio na mata. Para tapar a queimadura, a Lua toma a gordura da capivara e destampa o buraco da água fechado por uma casca de tartaruga, gerando um inundação. Em algumas versões, o sol lança uma corda de buriti para salvar a lua. Em outras, um macaco entrega um cipó para os homens resgatarem a lua ou há um cachimbo que leva e traz o primeiro ser humano do céu para a terra.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

12 comentários

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Rogerio Cerantola

Niède não pode ter 92 anos se nasceu em 1959. Estrito (estreito) de Behring. Preenchimento dos torços (torsos). O texto é excelente, mas a revisão pode melhorar.

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Hernani José Roscito

Niéde nasceu em 1959 e, hoje, tem 92 anos?

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Daniel Ricardo Lizi Castro

Sempre gostei dos textos deste blog por aprender muito com eles e me colocar para refletir. Neste, especificamente, gosto por ser belíssimo e por causar um quentinho n'alma.

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