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Carlos Affonso Souza

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Disputa entre Apple e Facebook envolve muito mais que a sua privacidade

NurPhoto via Getty Images
Imagem: NurPhoto via Getty Images

18/05/2021 04h00

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De que lado você está na disputa entre Apple e Facebook sobre proteção de dados? A resposta pode ser mais complicada do que parece.

As inovações trazidas pela mais recente atualização do iOS (14.5) esquentaram de vez o debate sobre anúncios direcionados e rastreamento de dados entre aplicativos.

Em jogo não estão apenas os nossos dados, mas também o futuro da publicidade online e a estruturação dos negócio de duas gigantes da tecnologia que um dia foram parceiras e que hoje estão de lados opostos do ringue.

Aqui vai um passo a passo para entender como chegamos na discussão atual e o que ela revela sobre os planos das duas empresas.

Steve Jobs, Zuckerberg e uma viagem espiritual

Apple e Facebook nem sempre foram rivais, pelo menos no que diz respeito à relação mantida entre os seus CEOs em décadas passadas.

Steve Jobs e Mark Zuckerberg tinham um canal aberto para trocar ideias sobre vários assuntos, inclusive sobre espiritualidade. Em um momento difícil da carreira do jovem CEO, na qual cogitava se deveria vender o Facebook, Steve Jobs aconselhou Zuckerberg a viajar para a Índia e conhecer o templo no qual o próprio Jobs havia ficado e que havia sido fundamental para a sua trajetória.

Zuckerberg lembra dessa viagem como essencial para clarear a sua visão de futuro e para decidir finalmente não vender a rede social. A relação de "mentoria" entre os CEOs havia surtido efeito.

Uma receita sobre privacidade

Steve Jobs iPhone - Reprodução - Reprodução
Steve Jobs apresentando o iPhone
Imagem: Reprodução

Em uma palestra em 2010, com Mark Zuckerberg na audiência, Steve Jobs falou sobre como empresas de tecnologia devem tratar os dados de seus usuários.

"Acredito que as pessoas são inteligentes e que algumas querem compartilhar mais dados do que outras pessoas. Pergunte a elas. Pergunte sempre. Faça-as dizer para você parar de perguntar se elas se cansarem de tantas perguntas. Diga a elas exatamente o que vai fazer com seus dados ", aconselhou o CEO da Apple.

A fala de Steve Jobs foi resgatada quando, em 2018, explodiu o escândalo envolvendo a empresa Cambridge Analytica, que teve acesso a dados de milhões de usuários do Facebook. Zuckerberg, e o próprio modelo de negócio da rede social, acabaram entrando na mira do Congresso americano e de reguladores pelo mundo afora.

Tal qual os tuítes proféticos do ex-deputado Eduardo Cunha, a fala de Steve Jobs parecia soar um alarme que se tornaria bastante concreto oito anos depois.

Nós vamos invadir a sua praia!

Competição está no DNA do Vale do Silício. Como diz Jillian York, em um trocadilho que funciona melhor em inglês, é um verdadeiro "Silicon Value", um valor que impera entre as grandes empresas da região da Califórnia.

Não custou muito para que Apple e Facebook começassem a ver as fronteiras que existiam entre as duas empresas serem atravessadas.

Em 2011 o Facebook lançou o seu serviço de mensagens instantâneas (Messenger) como um aplicativo autônomo. Ele veio para competir com outras aplicações de mensagem, incluindo o iMessage, da Apple, que é uma forma popular de troca de mensagens em grandes mercados, como nos Estados Unidos.

Em 2013, a HTC começou a fabricar um smartphone do Facebook, que acabou não decolando nas vendas. Já estava claro o desejo da empresa conhecida por sua rede social de expandir parcerias para a produção de dispositivos móveis.

Será que no futuro um celular do Facebook poderia competir com os já consolidados iPhones?

Privacidade em primeiro lugar

Tim Cook Apple - Reprodução - Reprodução
Tim Cook, executivo-chefe da Apple, apresenta novo Mac
Imagem: Reprodução

Desde que assumiu a posição de CEO da Apple, em 2011, Tim Cook passou a recorrer ao tema da privacidade e da proteção de dados como um diferencial da empresa.

Em 2015, Cook afirmou que privacidade é um "direito humano fundamental" e que a empresa levaria isso a sério no design de seus produtos.

A letra da icônica música de Tantão e os Fita —que diz "Piorou/Piorou/Piorou/Vai pioraaaaar!!"— parece casar bem o que a escalada da tensão entre as empresas a partir de 2018, seguindo na esteira do escândalo da Cambridge Analytica.

Em uma palestra em Bruxelas, Tim Cook passa a comentar sobre o modelo de negócio alheio. Segundo Cook, "plataformas e algoritmos que prometem melhorar nossas vidas podem realmente ampliar nossas piores tendências humanas."

"Atores desonestos e até mesmo governos têm aproveitado a confiança do usuário para aprofundar divisões, incitar a violência e até mesmo minar nosso senso comum do que é verdadeiro e do que é falso. Essa crise é real. Não é imaginário, nem exagerado, nem maluco (...) E esses amontoados de dados pessoais servem apenas para enriquecer as empresas que os coletam."

Tim Cook, CEO da Apple (2018)

Na oportunidade Cook lembrou que a Apple apoiava uma ampla mudança legislativa que pudesse colocar o uso de dados pessoais sob controle. Até então uma parte importante das empresas de tecnologia era bastante vocal contra reformas regulatórias.

O cenário hoje é bem diferente, inclusive com o Facebook apoiando mudanças na legislação americana sobre responsabilidade e transparência de plataformas.

O discurso da Apple sobre priorizar a privacidade dos usuários não ficou isento de críticas.

A presença da empresa na China sempre foi alvo de preocupação no que diz respeito ao controle de conteúdo e compartilhamento de dados com o governo local.

Mais recentemente, durante os protestos em Hong Kong, a empresa removeu da sua loja de aplicativos um app de mapas que estava sendo usado por manifestantes para monitorar o deslocamento policial.

Sem saber o que tem para o almoço

Nem todos os apps que rodam em um iPhone passam pela App Store pública. A Apple confere um certificado para que empresas possam desenvolver aplicativos de uso interno e que rodam em iPhones.

Em 2019 o Facebook disponibilizava uma série de apps para os seus funcionários, contendo informações como atividades do trabalho, entregas previstas e o cardápio do almoço. Isso até um dia a Apple revogar o certificado do Facebook, simplesmente quebrando a operação desses aplicativos.

A decisão da Apple veio depois da revelação de que o Facebook estaria disponibilizando um app de pesquisa de comportamento online que dava à empresa acesso quase integral às funcionalidades do celular do usuário em troca do pagamento mensal de 20 dólares. Cerca de 5% desses usuários eram adolescentes.

O estrago foi grande, especialmente porque a revogação do certificado não atingiu apenas aplicativos de organização do trabalho, mas também as versões beta do Facebook, Instagram e outros apps da empresa, que precisam ser disponibilizados e testados antes de entrarem na App Store.

Uma reunião indigesta

Ainda em 2019, Cook e Zuckerberg se encontraram em um evento sobre mídia e tecnologia, na cidade de Sun Valley, no estado norte-americano de Idaho. Era para ser uma conversa franca sobre o futuro da internet e dos negócios das respectivas empresas.

Segundo informações de presentes no evento, Zuckerberg teria perguntado a Cook como ele lidaria com os efeitos do escândalo da Cambridge Analytica. O CEO da Apple teria respondido que a melhor saída seria apagar todos os dados dos seus usuários.

Dito de outra forma, Cook estava condenando o próprio modelo de negócio do Facebook, ancorado no tratamento de dados pessoais para a customização de anúncios. Era uma pista do que estava por vir.

Pedindo para não rastrear

A Apple já vinha anunciando desde 2020 que faria uma mudança importante na forma pela qual os usuários de iPhone são informados sobre o tratamento de seus dados pessoais.

Depois de rodar alguns anúncios na televisão e nas mídias online, finalmente foi anunciado o projeto de transparência sobre rastreamento de apps.

A mudança mais visível veio com a atualização do sistema operacional iOS 14.5, que fez surgir na tela do iPhone um menu padrão que pergunta se o usuário deseja que o aplicativo que ele acabou de abrir possa ou não rastrear os seus dados para além do próprio app.

Essa medida, segundo a Apple, reforçaria o controle do usuário sobre os seus próprios dados, dando visibilidade ao tema da privacidade.

O Facebook, por outro lado, alega que o movimento tende a prejudicar sensivelmente o mercado de publicidade online, que depende dessas informações para enviar mensagens que sejam cada vez mais próximas dos interesses de seus destinatários.

A empresa de Mark Zuckerberg alega que o menu padrão com as opções impostas pela Apple é simplista e acaba impulsionando os usuários a simplesmente recusar o rastreamento sem saber ao certo como isso afeta os serviços que usualmente acessam.

Os receios do Facebook parecem ter se concretizado, já que uma pesquisa recente apontou que apenas 13% dos usuários de iPhone optaram por permitir o rastreamento de dados entre apps e sites.

Pequenas empresas, grandes negócios

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Zuckerberg anunciou novidades para o futuro do Facebook, Instagram e Messenger
Imagem: Justin Sullivan/Getty Images/AFP

Segundo o Facebook, quem mais sairia perdendo com essa redução drástica no acesso a dados seriam as pequenas e médias empresas que encontraram na rede social e em aplicações semelhantes uma forma de fazer a sua mensagem chegar aos destinatários certos sem precisar recorrer a orçamentos de marketing vultuosos. A integração entre as diferentes plataformas da empresa também ajudaria nesse contexto.

Ao atacar o modelo de negócio das redes sociais, defende o Facebook, a Apple teria tornado mais difícil para pequenas e médias empresas serem notadas na Internet.

De certa maneira, voltamos ao bom e velho debate: publicidade direcionada a partir de dados pessoais fartamente coletados será mesmo a única forma de manter as redes sociais gratuitas para seus usuários?

Curiosamente, gratuidade é também a pedra de toque de um segundo argumento nessa discussão.

O fim da era dos apps grátis?

O que mais poderia estar por trás da decisão da Apple em restringir o acesso de aplicativos que rodam no iPhone aos dados de seus usuários?

A resposta pode estar na própria lógica da App Store, já que a empresa recebe um percentual de todas as vendas de aplicativos feitos na sua loja.

Dessa forma, a Apple teria todo interesse em reduzir o número de aplicativos grátis e extremamente populares na sua loja, como redes sociais, e fomentar uma cultura de apps que sejam pagos, nem que seja uma quantia pequena para serem baixados ou que contenham algum plano de assinatura.

É como em "Hannah Montana e Miley Cirus: O Melhor dos Dois Mundos". A partir dessa estratégia a Apple consegue desenvolver uma narrativa de proteção de dados de seus usuários e, ao mesmo tempo, atingir o modelo de negócio de concorrentes, forçando uma mudança que lhe favorece.

A cobrança de 30% sobre cada transação financeira feita por apps que são disponibilizados na App Store (única porta de entrada oficial para apps no iPhone) levou a Epic Games (conhecida pelo jogo Fortnite) a processar a Apple alegando abusividade nessa cobrança.

O Senado americano também está de olho no tema sob a lente do direito da concorrência.

Uma audiência recente, comandada pela senadora Amy Klobuchar (que acabou de lançar um livro sobre o assunto), se debruçou sobre as práticas de Apple e Google em suas lojas de aplicativos.

As pedras que sustentam o arco

Por mais de uma década, Apple e Facebook protagonizaram uma das disputas mais relevantes para o futuro da internet, capaz de decidir como utilizaremos os mais diferentes e populares produtos e serviços online.

Não deixa de ser revelador que o campo de batalha escolhido pelas empresas tenha sido o da proteção de dados e da privacidade.

Existe muito mais em jogo do que os dados dos usuários, como vimos. A disputa envolve modelos de negócio, cobrança de taxas e domínio de mercados distintos. O papel que a privacidade desempenha nesse cabo de guerra é ao mesmo tempo sutil e fundamental.

No livro "As Cidades Invisíveis", Italo Calvino narra uma conversa entre o viajante veneziano Marco Polo e Kublai Khan, soberano do império mongol. O viajante descrevia pedra a pedra de uma ponte. O imperador perguntou então qual pedra sustentava a ponte, no que Marco Polo respondeu que ela não era sustentada por uma pedra, mas sim pelo arco formado por elas. Ao ser perguntado então porque ele falava de pedras, já que só o arco interessava, Marco Polo respondeu: "sem as pedras não existe o arco".

Privacidade e proteção de dados são as pedras do arco que sustenta os modelos de negócios de grandes empresas de tecnologia.

Muitas vezes nós ficamos encantados com as novas funcionalidades por elas criadas e como isso pode facilitar as nossas vidas. Mas vale prestar atenção que muitas vezes são os regimes de acesso e de utilização de dados pessoais que alicerçam essas transformações.

Não por outro motivo é que o campo de batalha entre Apple e Facebook é justamente a narrativa sobre acesso e utilidades retiradas dos dados pessoais. Essa é a peça fundamental que coloca de pé diversos modelos de negócio que alicerçam o futuro da rede.

Sem pedras não existe o arco. É preciso falar das pedras.