Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.
Como a reforma eleitoral pode bagunçar a internet e mexer com redes sociais
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As eleições são a base de uma democracia. Sendo assim, a definição sobre quais regras vão reger o processo eleitoral é um dos temas mais fundamentais para o destino de um país. Essas regras devem ser definidas depois de um exaustivo processo de consulta pública, com a maior transparência possível sobre as decisões tomadas pelos nossos representantes eleitos.
Enquanto o Brasil assiste atônito à CPI da Covid e a pandemia impacta os trabalhos legislativos, o Congresso Nacional segue a toque de caixa com a mais ampla reforma das regras eleitorais desde a redemocratização. Está tudo em jogo: o sistema eleitoral, a representatividade dos candidatos, a transparência das candidaturas e por ai vai.
Só a reforma do Código Eleitoral tem 900 (novecentos) artigos. Não tem sociedade civil que dê conta de absorver e participar de uma discussão dessa envergadura quando o próprio presidente da Câmara já avisou que gostaria de votar tudo rapidamente. Aventou-se votar agora em julho, mas é provável que tudo fique para agosto.
Vale lembrar que o texto que se quer votar nem mesmo foi publicado. Ele corre de mão em mão, nas caixas de emails e nos grupos de WhatsApp, mas nem sinal da versão mais atual ("a que vale") no site do Congresso. Não é assim que uma reforma eleitoral deveria ser feita.
Um grupo de organizações lançou a iniciativa Freio na Reforma, que compilou 20 (vinte) retrocessos na proposta do novo Código Eleitoral. A legislação eleitoral precisa de sistematização, mas a forma, o tempo e o conteúdo da atual proposta é um grande problema.
Enquanto temas como o distritão e o voto impresso ganharam maior tração na imprensa, existe uma série de mudanças importantes que a reforma do Código Eleitoral traz para o uso da internet nas eleições.
Aqui vão quatro pontos para prestar atenção sobre como a reforma eleitoral pode mexer na internet.
1. Provedores não poderão excluir contas de candidatos
O Planalto já anunciou que prepara um decreto para impedir que redes sociais, empresas de meios de pagamento e demais provedores possam excluir a conta de seus usuários sem ordem judicial. Uma minuta do texto chegou a ser publicada e recebeu inúmeras críticas.
A proposta de reforma do Código Eleitoral praticamente copia a mesma solução. Se ela for aprovada, é como se o decreto de Bolsonaro passasse a valer para as eleições de 2022.
A redação do artigo 529 do novo Código Eleitoral diz assim:
É proibido o banimento, o cancelamento, a exclusão ou a suspensão de conta de candidato a cargo eletivo durante o período eleitoral, salvo por decisão judicial ou em atendimento às regras do art. 571 deste Código"
Ou seja, o candidato vai poder descumprir as regras das plataformas (e as leis nacionais) o quanto quiser que as empresas só poderão mexer na sua conta com a expedição de uma ordem judicial.
Vai poder ter conteúdo de ameaça, discurso de ódio e desinformação sobre a pandemia e vacinas. Um candidato poderá incitar atos de violência em lives e não teremos remédios instantâneos que possam atingir a conta desse usuário.
As plataformas não poderão aplicar as próprias regras que fariam com que qualquer outro usuário fosse punido por esses comportamentos.
Os candidatos na eleição de 2022 virariam assim uma categoria nova de superusuários das redes sociais e de demais provedores de aplicações. Para eles as regras não valem.
Em certa medida, a reforma eleitoral aqui parece querer evitar que aconteça no Brasil o que ocorreu nas eleições americanas com o candidato derrotado Donald Trump, que foi banido em sequência de várias plataformas depois de incitar apoiadores a invadir o Capitólio.
Caso algum candidato venha a contestar o resultado das eleições em 2022 e incitar seus apoiadores a cometer atos de violência, os provedores não poderiam suspender imediatamente a conta desse candidato, que continuaria a provocar atos contra a democracia até a obtenção de uma decisão judicial.
2. Interferência de partidos na moderação de conteúdo
Antes de começar as campanhas eleitorais, o artigo 543 da proposta de Código Eleitoral determina que:
As plataformas de mídias sociais e os aplicativos de mensageria privada devem publicar, em língua nacional, de forma clara, precisa e acessível, as políticas e regras de moderação de conteúdo aplicáveis ao processo eleitoral"
Essa é uma regra importante. Muitas plataformas já possuem políticas próprias para a moderação de conteúdos nas eleições, alertando que poderão excluir postagens ou vídeos que divulguem informações enganosas sobre como votar, que visem a intimidar eleitores ou que divulguem resultados falsos.
Mas existe uma confusão conceitual aqui. O que as plataformas devem publicar são as suas políticas sobre o tema (ou os chamados "termos de uso" ou "padrões da comunidade"). O uso da expressão "regras de moderação" em si pode gerar alguma confusão com as orientações que as empresas geralmente adotam internamente para interpretar e aplicar as suas próprias regras.
Esses manuais —que volta e meia vazam— são usados pelos moderadores na hora de decidir se algo deve ou não sair do ar. A divulgação desses manuais é problemática porque pode oferecer o caminho das pedras para usuários mal-intencionados sobre como publicar algo danoso sem cair na malha fina da dinâmica de moderação em certa plataforma.
A novidade nesse tema é a inclusão dos parágrafos desse artigo 543. O parágrafo primeiro afirma que:
Os órgãos de direção nacional dos partidos políticos poderão impugnar, perante o Tribunal Superior Eleitoral, regras de moderação de conteúdo que impliquem na restrição indevida de direitos e garantias de cunho político"
Já o parágrafo segundo determina que depois de ouvida a Procuradoria-Geral Eleitoral, o TSE terá o prazo de 5 dias para decidir.
Se o artigo for aprovado podemos esperar que partidos contestem as regras de plataformas alegando que a sua aplicação restringe a liberdade de expressão de candidatos.
Essa medida retira da esfera privada das empresas a decisão sobre quais tipos de conteúdo elas querem permitir em seus ambientes. Adicionalmente, joga para o colo do TSE o ônus de decidir sobre se alguma regra ofende direitos antes mesmo dela ser aplicada em qualquer caso concreto.
3. Conta precisa ser identificada ou será removida
A vedação ao anonimato na Constituição não significa que a gente sempre tenha que identificar quem disse o quê.
O STF já decidiu que a vedação ao anonimato significa que é preciso ter meios para se chegar a quem disse alguma coisa, justamente para poder punir quem abusa da liberdade de expressão e causa danos.
Essa forma de se chegar em quem disse o quê na internet é desenhada no Marco Civil da Internet, que manda os provedores guardarem informações sobre IP, data e hora de acesso. A reforma eleitoral manda essa construção jurisprudencial e legal pro espaço.
O artigo 526 determina que toda publicação na internet "pressupõe a existência de pessoa natural, assim como a identificação imediata ou, à falta dela, a indicação de e-mail ou outra forma de contato no próprio canal utilizado."
Existiriam então duas opções: ou você se identifica ou disponibiliza um email para contato.
Caso não exista identificação (da pessoa ou do seu e-mail), o parágrafo primeiro do artigo 526 dispõe que essa publicação será considerada anônima e passível de remoção imediata.
A reforma ficou a um passo de requerer que cada pessoa entre com o seu CPF para poder publicar qualquer coisa durante o período eleitoral. Essa ideia tentadora frequentemente aparece nos debates sobre regulação dos ambientes online.
4. "Esses não são os robôs que você está procurando"
A proposta de reforma eleitoral procura acabar com o uso de robôs na propaganda política ou eleitoral. A medida, que é bem intencionada, pode acabar causando alguns efeitos colaterais. Assim está redigido o artigo 528 da reforma do Código Eleitoral:
Durante o período eleitoral, é vedada a veiculação de propaganda política ou eleitoral por intermédio do uso automatizado de perfis em mídias sociais, assim como perfis robôs, ainda que assistidos por humanos"
Em uma cena clássica do filme Star Wars o jedi Obi-Wan Kenobi controla a mente de um soldado imperial para que ele não veja os droids ("robôs") que estava transportando. A partir desse truque mental o soldado repete que aqueles não eram os robôs que ele estava procurando.
Caso o dispositivo da reforma eleitoral entrasse em vigor, várias contas automatizadas que são úteis ao debate público não poderiam operar.
Foram justamente contas automatizadas que recentemente flagraram a corrida por parte de agentes políticos para apagar suas postagens sobre a eficácia do tratamento precoce contra a covid-19 ou celebrando a compra de vacinas da Covaxin, hoje alvo de investigação pela CPI.
Além disso, vale lembrar que o foco na conta automatizada perde de vista que uma parte importante do problema não são os "bots" em si, mas sim o comportamento automatizado.
Não raramente vemos na internet que a reprodução de um conteúdo danoso começa não com os robôs, mas sim com a publicação feita através de uma conta de autoridade pública ou influenciador digital, claramente identificado. Essa conta serve então de fator de legitimidade para a atuação a seguir de uma rede de robôs.
***
O projeto de reforma do Código Eleitoral trata ainda de diversos outros temas sobre internet, como impulsionamento de conteúdos, checagem de fatos, proteção de dados pessoais e disparo em massa de mensagens instantâneas. Precisaríamos de muito mais do que uma coluna para dar conta de tantos de assuntos.
O recado então é claro: as mudanças serão muitas e profundas. O grau de debate público sobre as mesmas nem tanto. Existem pontos positivos na reforma e outros que criam sérios problemas para o futuro da rede e quiçá do país.
É como na famosa a frase de Chesterton: "uma das grandes desvantagens de termos pressa é o tempo que nos faz perder."
Existem debates importantes que precisamos fazer sobre as regras eleitorais na internet, mas dada a pressa com que se quer resolver tudo de uma vez, precisamos perder tempo explicando que esse processo atabalhoado, pouco transparente e participativo, pode colocar muito a perder.
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