Topo

Carlos Affonso Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

'Sigilo de 100 anos' tem pico de buscas no Google - e ele sequer existe

01/09/2022 04h00Atualizada em 01/09/2022 10h12

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Uma das buscas mais realizadas no Google durante o primeiro debate presidencial das eleições de 2022 (promovido pelo UOL, em parceria com a Band, Folha e TV Cultura) foi "o que é sigilo de 100 anos?". O tema foi destaque nas redes logo após o candidato Lula comentar que revogaria de uma só vez todos os decretos de Bolsonaro que impõem 100 anos de sigilo sobre as mais diversas informações.

O governo vem "decretando" o sigilo centenário para informações como dados de acesso ao Palácio do Planalto, em especial dos filhos do presidente ou documentações sobre a aquisição da vacina indiana Covaxin, alvo da CPI da Covid.

A Receita Federal colocou sigilo de 100 anos no processo de apuração das chamadas "rachadinhas" no gabinete do senador Flávio Bolsonaro. O Exército também negou acesso e impôs sigilo centenário ao processo administrativo que absolveu o então general da ativa, Eduardo Pazuello, das acusações de ter participado de evento político ao lado do presidente.

Ao ser indagado no Twitter sobre qual seria o motivo para tantas informações receberem o sigilo de 100 anos, o próprio Bolsonaro respondeu: "em 100 anos saberá".

Não existe decreto de sigilo de 100 anos

Acontece que não existe decreto de 100 anos de sigilo na lei brasileira.

O que o governo está fazendo não é dizer que alguma coisa é tão importante para a segurança do Estado que ela vai ficar em segredo centenário.

É o contrário: o governo está negando acesso a essas informações porque, no seu entender, elas são privadas, em eventual deturpação dos preceitos existentes na Lei de Acesso à Informação (LAI) e na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

O prazo máximo para sigilo de uma informação ou documento público no país é, em regra, de 25 anos.

A noção de que existiria um sigilo de 100 anos confunde os conceitos de informações públicas e privadas.

Informações privadas constantes de documentos públicos podem ser resguardadas por até 100 anos. É um direito do titular de dados pessoais, mas essa proteção não cabe quando se trata de documento ou informação de interesse público. E é aqui que mora a confusão, aproveitada espertamente por quem pode ter algo a esconder.

O que diz a lei?

Segundo o artigo 24 da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011, a "LAI"), "as informações em poder dos órgãos e entidades públicas, observado o seu teor e em razão da sua imprescindibilidade à segurança da sociedade ou do Estado", poderão ser classificadas como ultrassecretas, secretas ou reservadas. Os prazos máximos de sigilo são de 25, 15 e 5 anos, respectivamente.

A competência para determinar o sigilo varia de acordo com o grau da classificação. Para as informações ultrassecretas essa tarefa cabe ao presidente, vice-presidente, ministros e autoridades com as mesmas prerrogativas, além dos comandantes das Forças Armadas.

A classificação como secreto, por exemplo, pode ser feita também pelos titulares de autarquias, fundações ou empresas públicas. E por ai vai.

Sendo assim, não existe classificação de documento ou de informação com sigilo de 100 anos. O prazo original máximo para restrição de acesso, segundo a LAI, é de 25 anos.

De onde vem então essa história de sigilo de 100 anos?

O artigo 31 da LAI diz que as informações pessoais, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem "terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção."

O prazo centenário é para a defesa dos dados pessoais de cidadãos que possam figurar em documentos públicos, por exemplo. E mesmo isso pode ser afastado, como indica o próprio §4º do art. 31 da LAI, que diz que "a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância."

Ou seja, se a informação é de interesse público, a regra é a publicidade. Se ela comprometer qualquer questão de segurança da sociedade ou do Estado, o sigilo pode ser imposto até 25 anos.

Independentemente dessa classificação, caso informações ou documentos públicos contenham informações pessoais, elas poderão ficar restritas por até 100 anos.

Como funciona o "sigilo de 100 anos" na prática?

Vale repetir: não existe classificação de informação ou documento público com sigilo de 100 anos. O que existe é uma decisão, por parte da administração, em não conceder acesso à informação porque considera que a mesma é de natureza privada. E com isso a informação ficaria restrita por até um século.

Essa restrição centenária ocorre geralmente dentro do contexto de uma negativa de acesso a certos dados públicos, com a administração afirmando que os mesmos contêm (ou são) informações pessoais, faltando interesse público para sua revelação.

Essa avaliação não vem ao mundo em forma de decreto, como ficou parecendo depois do último debate presidencial.

Na maior parte das vezes, ela é uma decisão administrativa, tomada por um servidor que, ao receber uma solicitação de acesso à informação, opta por negá-la com base na natureza da informação. Essa negativa geralmente vem amparada na LAI ou na LGPD para afirmar que a informação seria de natureza privada e que por isso ela não poderia ser revelada.

Na prática, com o acúmulo de pedidos de acesso à informação, vai se formando nas repartições um entendimento sobre o que seria informação pública e informação privada.

Como a confusão aqui é grande, surge a janela de oportunidade para, a partir dos mais diversos interesses, decidir por bem não revelar dados que poderiam comprometer alguma autoridade.

O acesso aos registros de visitação dos pastores Gilmar dos Santos e Arilton Moura, investigados no escândalo de corrupção no Ministério da Educação, por exemplo, foi negado inicialmente pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) por conter "informações pessoais sensíveis".

Um novo governo pode reverter o sigilo de 100 anos?

A decisão administrativa por não conceder acesso à informação pode ser revista, como aconteceu no próprio caso dos pastores do MEC. Além disso, um novo governo pode reverter entendimentos anteriores sobre não revelar informações porque elas seriam de natureza pessoal, alterando assim a restrição de 100 anos.

Mas não há necessidade de se revogar decretos de sigilo centenário porque, como visto —e até segunda ordem—, esses decretos nem existem. Bastaria que os servidores revisassem entendimentos anteriores e liberassem as informações previamente restritas.

Novos pedidos de acesso à informação podem também ter o mesmo efeito, provocando uma nova análise sobre as informações cujo acesso foi anteriormente negado.

Classificações como ultrassecreto, secreto e reservado podem ser materializadas em instrumentos como decretos, portarias, a depender da autoridade que os determinou. Nesse caso, pedidos de desclassificação seguem um rito próprio determinado na LAI.