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Carlos Affonso Souza

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Da Globo para o WhatsApp: como as redes assumiram o debate presidencial

Debate presidencial da TV Globo virou fábrica de memes, figurinhas e likes - Reprodução/TV Globo
Debate presidencial da TV Globo virou fábrica de memes, figurinhas e likes Imagem: Reprodução/TV Globo

03/10/2022 11h56

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O último debate entre os candidatos a presidente no primeiro turno das eleições de 2022 foi transmitido na noite dessa quinta-feira (29). Você acompanhou pela televisão ou pela internet? Talvez essa pergunta faça cada vez menos sentido, já que os debates —e esse último em especial— parecem ser cada vez mais feitos para sair da TV e entrar de vez no ecossistema das redes.

Muito se falou, em 2018, como Bolsonaro parecia um candidato moldado pela (e para as) redes sociais. Suas frases de impacto, "mitadas" e polêmicas ofereciam um manancial de conteúdo para alimentar as redes sociais de seus apoiadores.

Se por um lado já se comentou que a decepção com os candidatos-influenciadores levou ao retorno do papel da "velha política" na hora do voto, como visto de certa maneira em 2020, a fusão entre política e Internet segue a toda nos debates eleitorais transmitidos pela televisão.

O que não faltou nesse último debate foram candidatos que aproveitaram seus momentos de fala para produzir conteúdo para as redes sociais.

A candidata Soraya Thronicke (União Brasil), que foi eleita para o Senado como representante do Mato Grosso do Sul justamente na classe de 2018 (a eleição das redes sociais e do WhatsApp) não decepcionou.

Nos últimos debates já havia protagonizado cenas prontas para virar cortes para a internet, como a simulação do jogo "o que é, o que é" com o candidato Felipe D'Ávila e a ameaça voltada ao presidente Bolsonaro para que não cutucasse "a onça com sua vara curta", uma expressão polissêmica que transita entre questionamentos sobre anatomia e o sucesso da novela Pantanal.

Nessa edição, ganharam destaque os confrontos entre a candidata do União Brasil e o candidato Padre Kelmon (PTB).

Ao duvidar do status de Kelmon como sacerdote, não demorou mais do que cinco minutos para aparecer nas redes a figurinha de WhatsApp com a foto da senadora e a pergunta "você não tem medo de ir pro inferno?". Conteúdo pronto para ser usado quando alguém falar algo maldoso no grupo da família ou dos amigos. O mesmo vale para o momento em que a candidata chamou Kelmon de "padre de festa junina".

Vivemos uma época estranha em que o desempenho em debate eleitoral parece ser medido pela quantidade de memes e de figurinhas de WhatsApp que são criadas enquanto transcorre o programa na televisão. Nesse quesito, Padre Kelmon foi talvez quem mais ganhou com a visibilidade concedida pelo debate e com as dinâmicas próprias das redes sociais.

Não deixa de ser curioso que o momento de maior visibilidade de Kelmon no debate não tenha sido mostrado na TV. Ao provocar o candidato Lula (PT), Kelmon conseguiu tirar o ex-presidente de uma posição de conforto e partir para a troca de agressões. A Rede Globo imediatamente passou o foco da câmera dos candidatos para a bancada onde estava o mediador William Bonner, que procurava acalmar os ânimos.

Apoiadores do ex-presidente viram o episódio com apreensão, mas reputaram que o seu impacto seria diminuído uma vez que o episódio se deu em horário avançado e, por isso, com menor audiência na televisão.

Vale lembrar que a internet não fecha. Assim que a briga aconteceu ela caiu nas redes e lá continuará sendo repercutida. Quem não viu ao vivo vai ver os cortes, interpretações e comentários que passaram a inundar as redes.

A briga entre Lula e Padre Kelmon era tudo que o ecossistema de desinformação queria.

Uma das fake news de maior alcance nessas eleições é a narrativa de que Lula, se eleito, fechará igrejas e perseguirá evangélicos. Panfleto enviado para a casa de apoiadores do pastor Silas Malafaia diz expressamente que "eles [políticos de esquerda] nos odeiam e farão leis para nos perseguir".

Ao atacar um candidato identificado com pautas religiosas, Lula deu aos seus adversários um conteúdo precioso para servir de suporte para as teorias mais alucinadas.

Até então, essa narrativa se apoiava na perseguição desencadeada pelo presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, a seus opositores, inclusive a religiosos. Adversários de Lula procuravam colar nele o mesmo comportamento.

O que até ontem era apenas uma mensagem de WhatsApp com especulações sem qualquer resquício de conteúdo que pudesse suportar a tese, agora ganhou musculatura para convencer mais eleitores.

Se houver segundo turno nas eleições presidenciais de 2022 podemos apostar no aumento dessa interação entre o que passa no debate da televisão e o que vira conteúdo para a Internet.

Entender como funciona essa dinâmica deve fazer parte da preparação de todo candidato daqui para frente, seja para preparar os cortes que vão cair na rede ou para escapar deles.

O debate na televisão tem hora para acabar, ele é como o primeiro tempo de um jogo que continua a ser disputado nas redes sociais através de memes, curtidas, cortes e compartilhamentos do que se passou e de suas múltiplas interpretações.

Ainda vai chegar o dia em que, ao final do debate na TV, o candidato vai olhar para a câmera e mandar: "se você gostou desse conteúdo deixe o seu like, ative o sininho e me siga para mais receitas sobre como governar o Brasil".