Apps de transporte e entrega monopolizam decisões judiciais sobre algoritmo
O algoritmo isso, o algoritmo aquilo. Parece que toda discussão atual passa pela figura do algoritmo, da recomendação de uma nova série na plataforma de streaming às teorias da conspiração nas redes sociais.
Mas o que é um algoritmo mesmo? O conceito pode ser bem abstrato e geralmente aparece definido como um conjunto de instruções ou regras que busca resolver um problema específico ou realizar uma tarefa.
A comparação mais popular é com a receita de bolo. Você precisa colocar os ingredientes em uma certa ordem e quantidade para alcançar o resultado feliz de ter um bolo na mesa. Algoritmos de recomendação, por exemplo, precisam ter acesso a diversos elementos — os ingredientes, como localização, idade, gênero, buscas prévias, interação com anúncios —, para saber o que indicar com algum grau de sucesso e assim obter o melhor resultado — o bolo.
O algoritmo no Poder Judiciário
As referências ao algoritmo chegaram também ao Poder Judiciário. São processos que discutem as relações cada vez mais permeadas pelo uso dessas ferramentas, além de outros temas. Realizada pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) em parceria com a JusBrasil, uma pesquisa recente lançou luz sobre como o Poder Judiciário brasileiro tem decidido sobre algoritmos.
Mas quando será que o Judiciário discute sobre algoritmo? Seria em casos envolvendo a transparência na tomada de decisões automatizadas, como determina a LGPD, ou em questões relacionadas a moderação de conteúdo nas redes sociais?
Nada disso. O estudo revelou que a discussão sobre algoritmos nos tribunais ocorre, majoritariamente, na Justiça do Trabalho. De fato, dentre as 1.600 decisões analisadas, 95% abordam o tema são oriundas dessa esfera. Embora o termo "algoritmo" também apareça em outros contextos, como em decisões que discutem algoritmos como elementos de prova pericial, processos de criptografia, assinaturas eletrônicas e propriedade intelectual, é na Justiça do Trabalho que ele tem maior relevância.
Esse dado é ainda mais significativo quando se considera que 92% das decisões foram publicadas nos últimos três anos, com o primeiro caso datando de 2016.
Entre 2010 e 2015, as menções a algoritmos eram pontuais, muitas vezes relacionadas a discussões de prova pericial. A partir de 2016 e até 2020, houve um aumento significativo no número de decisões, com destaque para questões relacionadas ao trabalho por aplicativos. De 2021 a 2023, o volume de decisões se ampliou ainda mais, com quase 1.500 decisões — 89% delas tratavam de trabalho por aplicativo.
A "subordinação algorítmica"
A pesquisa também revelou que o debate sobre algoritmos na Justiça do Trabalho se concentra de forma predominante na figura da chamada "subordinação algorítmica". O termo tem sido recorrente na discussão sobre o potencial vínculo empregatício entre pessoas que trabalham por meio de aplicativos e empresas responsáveis pelas plataformas.
A Comissão Europeia, em 2021, propôs uma Diretiva que estabelece sete critérios para avaliar o potencial vínculo trabalhista no contexto de plataformas digitais. Caso três dos sete critérios estiverem presentes, poderia ser configurado o vínculo empregatício. São eles:
- Critério 1: A plataforma de trabalho digital determina limites máximos para o nível de remuneração;
- Critério 2: A plataforma de trabalho digital exige que a pessoa que executa o trabalho na plataforma respeite regras específicas no que diz respeito à aparência, conduta para com o destinatário do serviço ou execução do trabalho;
- Critério 3: A plataforma digital de trabalho supervisiona a execução do trabalho, inclusive por meio eletrônico;
- Critério 4: A plataforma digital de trabalho restringe a liberdade, inclusive por meio de sanções, de organizar o trabalho ao limitar o arbítrio de escolher o horário de trabalho ou os períodos de ausência;
- Critério 5: A plataforma digital de trabalho restringe a liberdade, inclusive por meio de sanções, de organizar o próprio trabalho ao limitar o arbítrio de aceitar ou recusar tarefas;
- Critério 6: A plataforma de trabalho digital restringe a liberdade, inclusive por meio de sanções, de organizar o próprio trabalho, limitando o arbítrio de usar subcontratados ou substitutos;
- Critério 7: A plataforma de trabalho digital restringe a possibilidade de construir uma base de clientes ou realizar trabalhos para terceiros.
Usando como base os critérios do debate europeu, a pesquisa de ITS Rio, em parceria com a JusBrasil, analisou 50 decisões da Justiça do Trabalho e verificou que alguns critérios têm sido mais preponderantes do que outros para a configuração da relação de emprego no Brasil.
Aparecem com mais frequência nas decisões brasileiras os critérios 1, 2, 3 e 6. Já os de menor incidência são os critérios 4 (restrição à liberdade de escolher horário de trabalho) e 7 (proibição de trabalhar para terceiros).
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Quero receberEsses dois são justamente os que menos parecem ser adequados ao modelo de contratação das plataformas digitais. Ao contrário, parece ser da essência desses serviços que a pessoa possa escolher o horário em que vai desenvolver suas atividades, sem qualquer requisito de exclusividade.
Por outro lado, existe uma presença constante do critério 3 (supervisão da execução do trabalho por meio da plataforma digital) como elemento definidor do vínculo nas decisões brasileiras. Elas destacam entre os fatores que evidenciariam a existência de relação de trabalho algumas funcionalidades como o monitoramento da localização ou a possibilidade de motoristas ou entregadores serem punidos por violarem regras da empresa.
Judiciário e dados abertos
A pesquisa ajuda assim a formar um mapa sobre como o Judiciário vem enfrentando temas complexos, quais são as linhas de argumentação mais comuns e como o debate vem evoluindo nas diferentes instâncias.
O Poder Judiciário tem sido pioneiro em iniciativas de digitalização e acesso à Justiça, mas é essencial que continue aprimorando a abertura de seus dados, que permite pesquisas como essa.
Vale lembrar que o STF vai decidir caso em que se discute a possibilidade de sites divulgarem informações sobre processos e decisões. Derivado de uma demanda do site Escavador, esse processo pode ser decisivo para que se tenha um acesso cada vez mais amplo aos dados do Poder Judiciário. Dados esses que permitem, em última instância, que a sociedade conheça cada vez melhor como decide o Poder Judiciário.
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