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Opinião

TSE usa chapéu de xerife eleitoral e endurece regras para plataformas

Nos Estados Unidos a cada ano o presidente vai ao Congresso apresentar um relatório das atividades desenvolvidas e um plano para o futuro chamado de "Discurso sobre o estado da União" (State of the Union). Esse discurso é muito aguardado. Em cima dele analistas fazem previsões sobre o que vem pela frente, revelam o sentido oculto do que foi dito nas entrelinhas e avaliam a performance do presidente.

O "Discurso sobre o estado da Tecnologia" do TSE

No Brasil, uma reforma na lei eleitoral feita em 2017 estabeleceu que o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) regulamentará a propaganda eleitoral na rede "de acordo com o cenário e as ferramentas tecnológicas existentes em cada momento eleitoral e promoverá, para os veículos, partidos e demais entidades interessadas, a formulação e a ampla divulgação de regras de boas práticas relativas a campanhas eleitorais na internet." (Lei nº 9504/97, art. 57-J).

O que o artigo 57-J fez foi dar ao TSE o poder de "a cada momento eleitoral" olhar para o cenário da tecnologia e fazer uma avaliação sobre como os diversos agentes envolvidos na dinâmica das eleições podem fazer e divulgar propaganda na Internet. Quais as ferramentas disponíveis para moderar conteúdo nas redes sociais? A inteligência artificial pode criar avatares de candidatos para interagir com eleitores? Como combater a desinformação a partir de conteúdos manipulados artificialmente?

Dessa forma, a lei eleitoral deu ao TSE, a cada dois anos, a oportunidade de fazer um verdadeiro "Discurso sobre o estado da Tecnologia" —e como ela se aplica nas eleições. O "discurso" do TSE sobre tecnologia e propaganda nesse biênio veio na forma da Resolução nº 23.732, aprovada pelo colegiado na semana passada. Como era de se esperar, não demoraram para aparecer comentários sobre acertos e erros do tribunal ao medir o pulso da tecnologia para as próximas eleições.

Três pontos positivos na Resolução do TSE

A resolução traz pelo menos três pontos que parecem positivos. O primeiro é a necessidade de o uso de conteúdo criado por inteligência artificial na propaganda eleitoral vir acompanhado de uma indicação de que o material foi fabricado ou manipulado e a tecnologia utilizada (art. 9-B). A regra tem exceções como o uso para melhorar a qualidade de imagem ou de som, além da criação de vinhetas e elementos de identidade visual.

O segundo ponto positivo foi a proibição do uso de "chatbots, avatares e conteúdos sintéticos como artifício para intermediar a comunicação de campanha com pessoas naturais", sendo vedada "qualquer simulação de interlocução com a pessoa candidata ou outra pessoa real" (art. 9-B, § 3º).

Essa proibição protege candidato e eleitor. Por um lado, evita que o chatbot faça discursos ou promessas que não representam a vontade do candidato ou seu programa. Por outro, protege os eleitores já que ainda estamos longe de ter desenvolvido uma educação digital que permita que eles diferenciem o que é uma ferramenta automatizada de uma verdadeira comunicação direta com o candidato. Assim como pessoas falam que o ChatGPT "disse que (...)", o que não ia faltar nas eleições era gente tomando como fala de um candidato as respostas geradas por inteligência artificial.

O terceiro ponto positivo é a vedação do uso "de conteúdo fabricado ou manipulado para difundir fatos notoriamente inverídicos ou descontextualizados com potencial para causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral" (art. 9º-C). Até aqui o que a resolução faz é adaptar as lições sobre o combate à desinformação nos pleitos anteriores para o estado atual da tecnologia.

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Os dois pontos a seguir são mais controvertidos e já apontam para uma série de disputas que podem marcar esse período eleitoral.

TSE avisa: vai cassar mandato em caso de desinformação sobre eleições

O parágrafo segundo do mesmo artigo 9-C avisa que quem criar ou manipular conteúdo para espalhar desinformação sobre a integridade do processo eleitoral ou causar danos ao equilíbrio das eleições será enquadrado por ter cometido "abuso do poder político e uso indevido dos meios de comunicação social, acarretando a cassação do registro ou do mandato", além de outras sanções.

Em 2021 o TSE aplicou pela primeira vez a pena de perda de mandato a um deputado por espalhar desinformação. Em live assistida por mais de 70 mil pessoas e faltando 22 minutos para o fechamento das urnas, o candidato Francisco Francischini alegou que teria "toda a documentação" sobre fraude nas urnas, ocorrida pelo suposto uso de tecnologia venezuelana.

Nós estamos estourando isso aqui em primeira mão pro Brasil inteiro (...) urnas ou são adulteradas ou fraudadas
Francisco Francischini

O então deputado ainda insinuou que a contagem dos votos em 2014 teria sido manipulada para favorecer a candidata Dilma Roussef.

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A decisão do TSE foi contestada no Supremo Tribunal Federal, que manteve o entendimento da corte eleitoral.

Com a resolução para o pleito desse ano, parece que o TSE já está avisando de antemão: quem desinformar e colocar em xeque a integridade do processo eleitoral terá o mandato ou o registro cassado. De certa maneira, é como se o tribunal tivesse transformado a solução do caso Francischini em normatização.

Redes sociais respondem se não removerem conteúdos antidemocráticos e de ódio

O segundo ponto que tem chamado atenção é a introdução do artigo 9º-E, que determina que as plataformas digitais poderão ser responsabilizadas junto com quem criou os seguintes tipos de conteúdo "quando não promoverem a indisponibilização imediata":

  • conteúdos antidemocráticos;
  • "fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral";
  • grave ameaça de violência contra os servidores da Justiça eleitoral;
  • "comportamento ou discurso de ódio, inclusive promoção de racismo, homofobia, ideologias nazistas, fascistas ou odiosas";
  • conteúdo fabricado ou manipulado "por tecnologias digitais, incluindo inteligência artificial, em desacordo com as formas de rotulagem trazidas na presente Resolução."

A redação não esclarece como as plataformas digitais deverão identificar os conteúdos acima. Isso leva a questionamentos sobre se elas deverão agir por conta própria, decidindo o que é ato antidemocrático e discurso de ódio e remover esses conteúdos sob pena de responsabilização, ou se o tribunal que decidirá sobre os conteúdos e notificará a plataforma, que deverá remover prontamente.

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A primeira intepretação representa uma mudança significativa na forma como se opera a responsabilização de plataformas digitais no Direito brasileiro. O Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/14) determina em seu artigo 19 que esses provedores, em regra, apenas seriam responsabilizados civilmente caso descumprissem uma ordem judicial que determinou a remoção de conteúdo.

A lógica do Marco Civil é clara: cabe em última instância ao Poder Judiciário dizer o que é lícito e ilícito. As plataformas podem (e devem) ser proativas na aplicação dos seus termos de uso, mas a definição última sobre o que é conteúdo antidemocrático, de ódio, discriminatório ou mesmo contrário à resolução do TSE não deveria ser uma obrigação das empresas. Cabe responsabilização civil caso não cumprissem essa determinação.

Sendo assim, temos um caso de resolução de tribunal que altera o regime desenhado por lei federal, pelo menos no que diz respeito à responsabilidade civil, já que a resolução também fala em responsabilidade administrativa. Isso poderia gerar questionamentos nos tribunais superiores e acelerar o processo de revisão do regime de responsabilidade civil na Internet, tema de decisões pendentes no STF e de movimentações no Congresso Nacional.

Não se deve esquecer que essas serão as primeiras eleições realizadas depois dos ataques de 8 de janeiro de 2023. Dessa forma, o endurecimento das regras sobre responsabilidade dos provedores também pode ser visto nesse contexto.

Tribunal quer objetividade para conteúdos subjetivos

A seguir, é de se questionar se o TSE, em sua análise do estado da tecnologia, não teria imaginado que as ferramentas automatizadas e os processos de moderação de conteúdo já não estariam prontos para identificar certos conteúdos e removê-los antes mesmo que eles fossem publicados ou de modo imediato quando caíssem em algum processo de monitoramento das plataformas.

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É verdade que muitas redes sociais adotam mecanismos que conseguem impedir o upload ou pelo menos encaminhar para uma revisão humana os conteúdos que potencialmente possam infringir seus termos de uso. Esses processos são tão mais eficientes quanto mais objetiva for a aferição sobre sua ilicitude. Ocorre, por exemplo, com o match entre uma nova foto que surge no ambiente online das plataformas com o banco de dados globalmente compartilhado por autoridades e empresas sobre conteúdos de pornografia infantil.

O caso muda de figura quando se trata de atos antidemocráticos, discurso de ódio e conteúdos veiculados em desacordo com as normatizações do TSE. Criar mecanismos para acelerar a remoção desses conteúdos, em especial depois de uma avaliação por parte do tribunal, é muito bem-vindo. A solução que parece ter sido escolhida pelo tribunal é que a avaliação sobre os materiais cabe às empresas e se o tribunal discordar da avaliação feita elas podem ser responsabilizadas (civil e administrativamente).

Não é apenas um distanciamento do regime que funcionava até então, ancorado em lei federal, como também um passo além do desenho de acordos de cooperação entre plataformas e o tribunal, como ocorrido nas eleições anteriores.

Uma questão para observar nos próximos meses é como os provedores de aplicação vão procurar cumprir essa regra e como o tribunal vai decidir aplicá-la. Um cenário não improvável é que esse artigo sirva como uma espécie de último recurso para pressionar provedores que, em certa medida, não venham a cumprir com ordens judiciais ou falhem em atender demandas oriundas de acordos de cooperação.

O Telegram, por exemplo, já foi alvo de ordem de suspensão no Brasil após não responder às comunicações da Justiça brasileira. Esse artigo poderia reforçar medidas nesse sentido.

O "Discurso sobre o estado da Tecnologia" do TSE trouxe muitas novidades. Por um lado, mostrou um tribunal atento ao desenvolvimento de inteligência artificial e seus impactos na propaganda eleitoral, medindo bem quais usos proibir de olho nas formas pelas quais campanhas e eleitores usam e compreendem essas ferramentas.

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Por outro, no que diz respeito ao combate à desinformação sobre integridade das eleições e o papel das redes sociais, o tribunal endureceu as regras ao transformar em norma a decisão pela cassação de mandato e ao modificar por resolução o desenho do regime de responsabilidade civil de plataformas digitais. Esses pontos devem gerar discussões que vão pautar as cenas dos próximos capítulos do período eleitoral.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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