Bairro eletrônico do Japão se reinventa para fugir do vazio da vida digital
Bem-vindo a um lugar onde você pode escapar da realidade. Um lugar onde você pode mergulhar nas experiências mais agradáveis, se jogar, ser livre e realizar seus sonhos
É o que está escrito na entrada de um prédio de sete andares, repleto de máquinas para apanhar prêmios, como travesseiros com o rosto de personagens de anime, além de jogos musicais frenéticos e simuladores de pescaria. Um lugar curioso para se alcançar a liberdade e realizar seus sonhos.
O manifesto escapista está na parede de um dos vários GiGO Game Centers, no bairro de Akihabara, em Tóquio, e promete o que muitos visitantes vêm diariamente buscar nessa região da cidade: uma experiência fora da realidade.
Em tempos de metaverso e a virtualização de tudo, ainda há lugar para um bairro dedicado ao entretenimento eletrônico? Se cada um pode escapar para dentro do celular ou da tela mais próxima e comprar tudo online, por que ocupar quarteirões inteiros com máquinas de jogos e lojas que vendem revistas em quadrinho, fantasias e bonecos de ação?
Entender a história, as transformações e as atrações de Akihabara é mergulhar em uma parte significativa da cultura pop japonesa. Ao mesmo tempo, oferece uma janela para compreender como hábitos de consumo e de socialização e nossa percepção do que é real são impactados pela constante presença do virtual.
A 'cidade elétrica' de Akihabara
"Akihabara", e o seu popular diminutivo "Akiba", faz referência ao santuário dedicado a uma divindade do fogo que foi construído após um incêndio devastador no local em 1869. Originalmente, o bairro começou como posto de comércio fora do centro da cidade de Edo (antigo nome de Tóquio) e vendia todo tipo de coisa.
Foi só no pós-guerra que Akihabara começou a se transformar na cidade elétrica ("electric town" é outro dos seus apelidos). Com o Japão se reconstruindo e se modernizando, Akihaba virou polo de eletrodomésticos e produtos eletrônicos em geral.
A partir dos anos 1980, com a expansão global da cultura pop japonesa, Akihaba se reinventou mais uma vez. O bairro virou sinônimo de videogames, mangás, animes e da cultura otaku. Arcades populares, lojas especializadas em eletrônicos e a vibrante cena de cosplay fizeram de Akihabara a cara mais visível de uma tendência cultural que dominou o Japão e o mundo.
Hoje Akihabara continua a refletir as mudanças na percepção das pessoas sobre a região e a cultura que ela passou a simbolizar. O bairro é um caldeirão em que tradicional e moderno se encontram. Lá, a nostalgia pela era dourada dos videogames de 1980 e 1990 convive com as mais recentes inovações tecnológicas e lançamentos de animes e mangás.
Cafés onde o que menos importa é o café
Akiba não é especialmente conhecida pelos seus restaurantes, mas os cafés atraem hordas de locais e turistas. Não tome a expressão café ao pé da letra. Até servem a bebida, mas as pessoas lotam os estabelecimentos a procura de coisas tão diferentes quanto tomar drink vampiro, fazer carinho em capivara (ou em corujas, coelhos e ouriços), comer omelete em forma de trem ou interagir com garçonetes vestidas como damas do período Sengoku.
O maid café é o subgênero mais popular em Akiba, exportado para o resto do Japão e para o mundo (incluindo São Paulo). Neles, o atendimento é feito por mulheres trajadas como empregadas domésticas, com avental e vestido rodado, que tratam os clientes como "mestres". Faz parte da experiência tirar (ou ganhar) foto da maid, além dos jogos de tabuleiro com elas. Toques ou linguagem inapropriada são expressamente proibidos.
Não é difícil imaginar que o público de um maid café é quase que exclusivamente masculino. Ao mesmo tempo em que começaram a aparecer em animes e mangás, romantizando os papéis de atendentes e clientes, a crítica ao reforço de estereótipos e a posição da mulher na cultura japonesa também ganhou força.
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Quero receberPor outro lado, começaram a surgir também os chamados butler cafes, em que os atendentes são vestidos como mordomos do final do século 19, que tratam os seus clientes como se fossem integrantes da aristocracia. Além dos danso cafes, em que as atendentes são mulheres vestidas com roupas masculinas.
Idols que você pode encontrar
Um dos lugares mais famosos de Akihabara é o teatro onde acontecem os shows do grupo musical AKB48. São dezenas de garotas no palco que encenam e cantam sucessos que redefiniram a indústria musical japonesa ao longo dos anos. O nome do grupo é uma combinação de "AKB", uma abreviação de Akihabara, e "48", que originalmente representava o número de membros. O projeto e a trajetória do grupo é um bom exemplo de como o físico e o virtual se complementam.
A girl band de (bem mais que) 48 integrantes foi criada a partir da ideia de "idols you can meet" ("ídolos que você pode encontrar"), já que ao invés de artistas inalcançáveis, as meninas poderiam interagir com os fãs, como nos eventos de aperto de mão que ocorrem após as apresentações e que logo viraram uma marca do grupo.
A popularização do AKB48 coincidiu com a expansão da Internet. Yasushi Akimoto, criador da banda, percebeu que os hits do futuro não viriam só da programação massificada do rádio, mas principalmente pela criação de uma base de fãs que lealmente faria de um conteúdo de nicho o sucesso de vendas. Não deixa de ser uma aplicação da teoria da cauda longa, popularizada por Chris Anderson no começo dos anos 2000.
A essência desse conceito também está presente no Teatro AKB48, onde equipes menores do grupo realizam apresentações diárias. Os ingressos são sorteados por uma loteria, dada a popularidade do grupo e o espaço limitado. Do lado de fora costuma funcionar um café para alentar os fãs sem ingresso e vender produtos do grupo.
Com o crescimento do número de integrantes, ficou difícil colocar todas as artistas no encarte dos CDs. Surgiu assim as chamadas "eleições gerais", nas quais os fãs votam em suas integrantes favoritas para ganhar destaque nos próximos singles e demais projetos. Como cédula de votação vinha dentro dos CDs do grupo, muitos singles quebraram recordes de venda. Assim morrem as democracias.
A junção entre real e virtual ficou ainda mais evidente quando uma nova integrante estampou uma revista japonesa e propagandas na TV em 2011. Os fãs ficaram surpresos: Eguchi Aimi não havia estivera em nenhum show anterior. Quem era? A moça era, na verdade, uma modelo criada artificialmente.
O detalhe mais assustador é que a sua fisionomia vinha da combinação de partes de corpo de outras integrantes do grupo. Das pernas às orelhas, do cabelo às sobrancelhas, Aimi era a soma de outras pessoas. Era a "heroína de uma nova era", disse o criador da banda. Como a recepção da integrante sintética ficou abaixo do esperado, Aimi foi aposentada. A lógica foi invertida: o ser humano pode tirar o emprego dos robôs.
Muito além do fliperama
Os edifícios de arcade com a fachada pintada de vermelho, antigamente dominados pela Sega, são uma visão comum em Akihabara. Embora a Sega tenha vendido suas operações de arcade, esses espaços continuam a símbolo do bairro, agora sob a marca GiGO.
Outras marcas, como a Taito, também operam prédios inteiros dedicados a máquinas de arcade. Cada andar é geralmente destinado a um tipo de jogo, desde máquinas de garra e purikura (cabines de foto) até títulos de jogos de luta e de corrida. Com a evolução da tecnologia de consoles domésticos e o advento dos jogos online, o interesse pelos arcades diminuiu na metade dos anos 2000. Isso fez os espaços a se reinventarem.
Back to Japan. My first arcade after return from US is Sega Akihabara No.3. They have fantastic collection of Sega's games by @yu_suzuki_jp and other great racing games. Also there are classics from 70's. #SEGA #Outrun #Spaceharrier #Afterburner #DaytonaUSA #Crazytaxi #HOD #PONG pic.twitter.com/eYl3gald72
? ???? ???? (@Ritakano) June 18, 2021
Hoje passear pelos andares de um arcade em Akiba é uma viagem pelas diferentes formas de interagir com a tecnologia da diversão. Nos andares de baixo, repleto de máquinas de garra, as pessoas colocam em prática as suas teses mirabolantes sobre qual movimento da garra é mais efetivo para agarrar o prêmio. No andar das cabines de foto, casais e grupos de amigas se produzem e gastam tempo escolhendo os filtros das fotos. Não que não tenham Instagram, mas há algo diferente em ter nas mãos a foto tirada na hora e usando os itens escolhidos pelo grupo.
Acima, nos caóticos andares de jogo de ritmo, os arcades mostram a sua faceta social, com grupos disputando ou cooperando em jogos de dança, além dos onipresentes simuladores de tambores taiko.
Nos andares dos jogos de luta e de corrida começam a aparecer mais jogadores individuais. Ali a fusão entre o digital e o físico está escancarada. Nos simuladores de corrida de cavalos e de pescaria, o controle que faz as vezes do anzol é físico, mas os jogadores pescam peixes digitais em uma grande tela horizontal. As máquinas do jogo de luta "Fate Grand Order", por sua vez, imprimem cartas correspondentes aos personagens que o jogador conquistou na tela.
Existe um lugar fora das redes para a cultura digital?
Entre prédios de tijolo e concreto, postes de luz e muito neon, Akihabara ainda é uma janela indispensável para entender o Japão moderno. Quanto mais as atividades rotineiras migraram para a Internet e a vida se torna mais digital, o bairro eletrônico de Tóquio parece ao mesmo tempo uma peça de resistência do passado e uma visão do futuro.
Ao juntar espaços físicos com as peculiaridades do entretenimento digital, Akiba dá sua resposta ao se reinventar a cada nova década.
É verdade que a tecnologia pode tanto aproximar como alienar e o bairro de certa forma representa essa dualidade. Ao mesmo tempo em que jogadores inveterados passam a noite sozinhos nos arcades, grupos se juntam para disputar partidas e se encontrar nos cafés. O físico e o digital andam lado a lado, cumprindo e falhando com a promessa de que um dia estaremos todos juntos em sonhos elétricos.
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