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Cristina de Luca

Você teme uso de seus dados pelo governo? OAB sim, e vê risco à democracia

OAB vê governo digital brasileiro como instrumento para elaboração e atividades de vigilância totalitária - Shuttestock
OAB vê governo digital brasileiro como instrumento para elaboração e atividades de vigilância totalitária Imagem: Shuttestock

Colunista do UOL

20/12/2020 04h00

Na Estônia de hoje, a única coisa que o cidadão não faz digitalmente é se divorciar. Tudo mais no relacionamento com o governo, até votar, pode ser feito sem sair de casa, usando a Internet e um sistema de identificação segura que se transformou em paradigma de identidade digital. A mágica por trás desse sistema é a X-Road, uma plataforma de compartilhamento de dados que tem por princípio aumentar a segurança dos dados pessoais dos cidadãos, evitar a duplicação desnecessária desses dados, e ampliar a transparência no seu uso pela administração pública, incluindo as forças de segurança.

Todo cidadão estoniano sabe exatamente quando cada dado seu é gerado, por qual órgão, e com quem está autorizado a compartilhá-lo, dependendo da finalidade de uso. A X-Road dá ao cidadão o benefício de determinar quais informações estarão disponíveis e quem terá acesso a elas.

Por que estou falando a Estônia? Porque ela é frequentemente citada pelo ministro Paulo Guedes como exemplo para as reformas estruturais que gostaria de ver implantadas no Brasil. Incluindo aí a criação de uma identidade digital como parte do projeto de govtech. A intenção por trás dessas iniciativas seria, inicialmente, a redução das fraudes em programas sociais como o Bolsa Família. Posteriormente, ficou claro os benefícios que poderiam trazer também para redução dos gastos públicos. Com a digitalização de seus serviços, a Estônia conseguiu poupar cerca de 2% do PIB por ano.

Escorado nesses dois argumentos, para lá de nobres, o ministro endossou, em outubro do ano passado, a publicação do Decreto 10.046, que instituiu o Cadastro Base do Cidadão, com o objetivo de criação de uma base integradora dos dados pessoais dos brasileiros em poder da administração pública e regulamentação do compartilhamento desses dados entre os órgãos de governo.

O mesmo decreto que, agora, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) afirma ser inconstitucional. Nesta sexta-feira, 18 de dezembro, a entidade ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) alegando que o documento cria um poderoso instrumento estatal para elaboração de dossiês contra cidadãos, opositores políticos e atividades de vigilância totalitária, colocando em risco a democracia.

Na opinião da OAB, e de advogados signatários da ação, como o professor Danilo Doneda, do Instituto de Direito Público, o decreto peca ao não estabelecer critérios objetivos e mecanismos que assegurem a devida transparência para o compartilhamento dos dados dos cidadãos entre os órgãos de governo.

A entidade pede a revogação do decreto, por violação direta aos princípios da dignidade da pessoa humana, da intimidade, da privacidade e da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, do sigilo dos dados e da proteção de dados pessoais e da autodeterminação informativa. Questões que vão contra preceitos constitucionais e dispositivos da Lei Geral de Proteção de Dados.

Em junho deste ano, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) já havia ajuizado no STF a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 695, com pedido de suspensão do compartilhamento de dados da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) pelo Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) com a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), amparada pelo decreto. O partido também enxergou no compartilhamento dos dados clara violação do direito à privacidade, à proteção de dados pessoais e à autodeterminação informativa, além de afrontar a dignidade da pessoa humana.

Após a repercussão negativa, o governo revogou a autorização para tal compartilhamento entre o Serpro e Abin. A OAB, porém, afirma que o decreto, por continuar em vigor, possibilita a criação de uma "ferramenta de vigilância estatal extremamente poderosa".

Vale lembrar que, há um ano, na época da publicação do decreto, especialistas ouvidos por esse blog já alertavam para o viés autoritário que carregava. Em especial, por criar uma sistemática toda própria para utilização dos dados, a partir de um viés tecnocrático que olha para os dados como propriedade do Estado, e não do cidadão.

"O cidadão tem seus direitos mencionados apenas como limites, como ressalvas, sem instrumentos que criem o mínimo de confiança ou deem legitimidade a esse sistema de tratamento", comentou, naquela época, o professor Danilo Doneda, já alertando para a falta de mecanismos de transparência e de controle dos dados.

"O decreto de Bolsonaro vai na contramão do que a gente vê em países como Reino Unido, Austrália, Canadá e Finlândia, de ter um nível de uso de dados com certa interoperabilidade entre eles, feito dentro de um ordenamento de transparência, com instrumentos que dão controle ao cidadão de como o dado dele é usado. A gente não vê nada disso nesse decreto", dizia Doneda. "É como se o Brasil tivesse aberto mão dos bons exemplos desses países e tivesse optado por uma mistura do Aadhaar, da Índia, com o credit score da China. A gente está bebendo no que de pior existe".

O professor poderia ter citado a Estônia entre os exemplos positivos. Mas não o fez. Agora, diante da ADI e do anúncio de que o governo se prepara para avançar na criação da identidade digital, segundo Luís Felipe Monteiro, secretário de governo digital do Ministério da Economia, durante sua participação no evento 5x5 Tec Summit 2020, o provoquei a falaar aa respeito.

A ideia do governo é usar biometria para identificar o cidadão. "A identidade é biométrica. É o que somos", afirma Luís Felipe, lembrando que a biometria é unívoca, precisa e matematicamente comprovável.

Hoje o governo trabalha junto com o TSE para uso da base biométrica capturada pelo tribunal para criação de "serviços de identidade". "A identidade não é um documento", afirma Luís Felipe. "A identidade é um serviço, transparente, que verifica se o meu dedo, se minha face, são meus, que estou tentando provar a minha identificação. E ela estar distribuída por todos os serviços públicos e privados", explica.

Segundo ele, o governo está criando uma plataforma que, incialmente, terá todos os documentos atuais digitalizados, e um barramento tecnológico que permitirá a identificação do cidadão por meio de uma base de dados biométrica unívoca.

Parece bom, considerando que o sistema de identidade no Brasil ainda é, em sua maioria, analógico e bastante fragmentado. Inexiste um cadastro integrado de impressões digitais, por exemplo. O cadastro civil biométrico é uma atribuição estadual (e não federal), razão pela qual cada Estado possui a sua regulamentação e o seu nível de maturação. Por causa disto, uma pessoa consegue tirar identidades (físicas) diferentes em qualquer lugar no Brasil, lembra a pesquisadora Tatiana Revoredo.

Mas há muitas varáveis entre o que está sendo feito no Brasil e o que foi feito na Estônia. Até março de ano, o Brasil possuía ao menos, 20 bases federais que armazenavam documentos como CPF, RG, passaporte e cartão do SUS. Considerando todos os ministérios, institutos e universidades públicas, o número de bases governamentais disponíveis pode ultrapassar 500, segundo estimativa baseada no SISP, sistema federal de tecnologia de informação. Nelas o governo pode ter acesso à vida econômica dos cidadãos, as relações empresariais e estudantis, parentescos e até mesmo informações sensíveis como raça.

O Ministério da Economia projetou investir perto de R$ 2 milhões para a interoperabilidade dessas bases, incluindo a implantação Cadastro Base do Cidadão, o uso de APIs e do blockchain.

Não só a OAB, como muitos especialistas e acadêmicos, têm pedido cautela na implementação dessas medidas. Temem o mau uso das bases para a segurança pública, discriminação e vigilância, como ia acontecendo no caso do compartilhamento do Serpro com a Abin.

Como equilibrar as coisas? Eis a questão.

"Não sou contra a criação de um cadastro unificado. Nem a OAB. Esse cadastro a gente vai ter que ter", explica Doneda. "Hoje temos vários cadastros... É melhor ter um só, bem feito, tanto por questão de eficiência quanto de segurança. Mas a gente tem que fazer o cidadão participar desse processo. Dar a ele acesso e controle aos dados. Se o conceito é identificar o cidadão, o cidadão também precisa identificar quem vai fazer uso dos seus dados", comenta.

Na opinião do professor, quando se fala em identidade como serviço, é preciso cuidar para que qualquer problema nesse sistema não prive o cidadão de usufruir dos serviços. "Se houver uma falha, o cidadão está perdido", pondera.

Foi fácil fazer ambos na Estônia, segundo Danilo, por se tratar de um país pequeno. "Porto Alegre tem mais habitantes que a Estônia", compara. "Do ponto de vista conceitual, de modelo, é lindo. Mas nossos desafios são muito maiores e complexos, considerando a tremenda desigualdade que temos, as dificuldades de acesso... Acho que quem se refere à Estônia precisa levar isso em consideração. No dia em que a Índia completar o sistema de identidade deles, aí sim a gente vai ter base para comparação."

Agora, se a inspiração continuar a ser a Estônia, principalmente como conceito abstrato de uma identidade centralizada, então que se considere também que lá se dá o devido retorno para o cidadão, pontua Doneda.

"Se é para usar a Estônia, vamos usar tudo. Vamos usar o que ela tem de melhor também. Vamos dar o controle para o cidadão e privilegiar a transparência. Ainda assim me questiono como dar controle para um cidadão que diz ter melhorado de vida com um auxílio de R$ 300. Será necessário ter políticas públicas que não excluam ninguém. Que respeitem as pessoas que nem sabem que precisam, ser respeitadas nessa questão."

A ADI é contra um sistema que passa por cima de tudo isso. Que não leva em conta os registros como um bem do cidadão. Que tira dele o controle sobre seus dados.

O anúncio do governo sobre a identidade digital, mencionado por Luís Felipe, ainda não foi feito. Já a ADI jogou a bola sobre o cadastro base para o Supremo.

Ambos devem ficar para 2021. Mas nossa atenção precisa estar neles, desde já.