Diogo Cortiz

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Opinião

Plano de Lula para IA no Brasil: o que pode dar certo e errado?

Todo mundo quer uma inteligência artificial para chamar de sua, e no Brasil não seria diferente. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que o mandatário espanhol Pedro Sánchez sugeriu que os dois países desenvolvessem uma IA que falasse português e espanhol. Lula achou a ideia genial. Um monte de gente também, inclusive eu. Mas entre desejos e vontades, a realidade tem restrições que podem causar desilusão.

A cena global de IA está concentrada nas empresas norte-americanas, com algumas chinesas e uma ou duas europeias correndo por fora. Discutir alternativas para diminuir essa assimetria é importante, mas precisa ser feito da maneira correta.

A posição de Lula e Sánchez é ao mesmo tempo boa e problemática. O ponto positivo: a fala mostra a importância da cooperação transnacional para o desenvolvimento da IA. O ponto negativo: a figura de linguagem ("vamos fazer uma IA nossa") comunica uma ideia ambígua que abre margem para especulações equivocadas.

Eu li até comentários de pessoas achando que Lula está tão presunçoso que quer criar uma estatal para competir com Google e OpenAI.

A ideia não é essa.

Pelo menos, espero que não seja.

O foco deve ser fomentar o ecossistema local para o desenvolvimento tecnológico. O Brasil não precisa de apenas uma única IA própria. O Brasil precisa de várias, para propósitos diferentes e desenvolvidas por diversos atores (universidades, startups e, por que não?, o próprio governo para uso interno).

Nos últimos meses, a IA virou sinônimo de modelos complexos, como ChatGPT e Google Gemini, mas, para muitos problemas locais, bastam modelos mais simples. Isso quer dizer que devemos pensar em como desenvolver, melhorar e usar também os grandes modelos de linguagem, até porque os desafios éticos, econômicos e culturais não são poucos.

As Big Techs apresentam suas IAs para o mundo como plataformas globais. Usuários do planeta todo usam ChatGPT e Google Gemini no dia a dia para fazer um monte de coisa. O problema é que nem todas as línguas e culturas estão igualmente representadas dentro desses modelos.

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As IAs comerciais apresentam um desempenho superior para o inglês e muitas vezes usam de traduções que achatam a cultura para contornar essa limitação para outros idiomas. Muitos usuários nem percebem essa restrição porque ela acaba ocultada pela verborragia da máquina.

Uma das principais causas desse problema é a falta de dados regionais, linguísticos e culturais para treinamento de modelos de IA. Um estudo recente de pesquisadores do MIT (Massachusetts Institute of Technology) fez uma grande auditoria nos principais conjuntos de dados usados para treinar IA e mostrou a altíssima concentração na língua inglesa e dados do Ocidente.

Esse desequilíbrio se reflete diretamente no comportamento dos modelos. Recentemente, eu e alunos da PUC-SP publicamos um artigo acadêmico preliminar mostrando a dificuldade da IA generativa em representar a identidade cultural brasileira no processo de criação de imagens.

Com suas imensas infraestruturas computacionais e gigantescos modelos de IA generativa, as big techs, detentoras do 'hard power' da tecnologia, passam agora a dominar uma nova forma de 'soft power' por modular e influenciar os tipos de conteúdos que o mundo irá produzir e consumir.

Isso não quer dizer que devemos parar de usar ChatGPT, Gemini, Midjourney entre outras. Em um cenário equilibrado, podemos ter soluções locais específicas coexistindo com os serviços das big techs. Quanto mais possibilidades, melhor.

Este é mais um motivo para pensarmos em alternativas para diminuir a assimetria que existe no universo da IA. O MCTI (Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) está trabalhando para atualizar a Estratégia Brasileira de IA, e este é um bom sinal. Pelo que acompanho das discussões, o foco está mais em como fomentar o ecossistema de IA no Brasil do que para "o governo vai criar sua própria IA".

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A pasta já organizou oficinas com representantes da academia, setor privado e sociedade civil para entender como o governo pode ser um ente estratégico que crie condições para a coisa acontecer tanto localmente como globalmente.

Essa conversa entre Brasil e Espanha, apesar de estar mais no campo das ideias do que no papel, ajuda a ilustrar o potencial que a cooperação transnacional tem para colocar países que estão no mesmo nível de desenvolvimento em uma nova rota de inovação por meio do compartilhamento de dados, recursos computacionais e projetos de P&D em conjunto.

No ano passado, eu organizei um painel sobre IA durante o Fórum Lusófono da Governança da Internet que reuniu representantes de língua portuguesa, como Brasil, Portugal, Angola, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé Príncipe. Saímos com o diagnóstico de que a língua portuguesa é sub-representada nos recursos computacionais para a IA e que precisamos de estratégias para mudar o jogo.

O Brasil preside o G20, e a IA é uma pauta que precisa ser colocada a partir de uma visão do Sul Global. Algumas colunas atrás, eu escrevi sobre 7 pontos que eu acho importante que o Brasil leve para o Fórum. Pontos que certamente podem nos ajudar a pensar sobre as nossas próprias estratégias e colaborações internacionais.

Muita gente acredita erroneamente que a inovação é papel exclusivo do setor privado, mas, quando estamos falando de uma tecnologia que poderá aumentar ainda mais a desigualdade entre os países, faz muito sentido que os governos criem estratégias locais.

Até mesmo nos EUA, que já lideram a corrida por IA, o presidente Biden apresentou uma Ordem Executiva sobre IA bastante ampla e que certamente fortalecerá o ecossistema e protegerá a indústria local. Por que o Brasil não deveria estar pensando em como entrar no jogo?

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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