Banir o TikTok é a prova de que os EUA perderam a hegemonia tecnológica
Na semana em que o Marco Civil da Internet completa dez anos no Brasil, o Senado norte-americano aprovou e o presidente Biden sancionou uma lei que dá ultimato ao TikTok: vender sua operação em até nove meses para alguém de que gostamos ou ser banido nos Estados Unidos.
O que as duas leis têm em comum, apesar de distantes no tempo e na geografia, é o pano de fundo: a espionagem estrangeira como ameaça à segurança nacional. O Marco Civil é considerado um dos exemplos por sua construção coletiva a partir de muitas audiências públicas, mas teve a sua aprovação acelerada com os escândalos revelados por Edward Snowden.
Uma década depois, agora são os Estados Unidos que se sentem fragilizados com uma suposta ameaça de espionagem em larga escala por meio de um aplicativo usado por mais de 170 milhões de cidadãos americanos.
O argumento dos congressistas norte-americanos para pedir a venda ou banimento é que o TikTok pode repassar dados pessoais de seus cidadãos para o governo chinês. A empresa nega veementemente, diz que não é um agente da China e que mais de 60% da organização é de propriedade de fundos globais de investimentos.
Outra fragilidade levantada pelos EUA é a manipulação que a plataforma poderia exercer sob a opinião pública americana. Uma pesquisa recente da Pew Research Center mostra que um terço dos adultos e mais de 60% dos jovens são usuários da plataforma. E desse último grupo, mais de 43% dizem usar o aplicativo como fonte regular de notícias.
O sucesso do TikTok pegou todos de surpresa e reconfigurou o modelo de comunicação digital. Se tem uma plataforma que mais se beneficiou com o avanço da IA, foi o TikTok. Quantas iniciativas surgiram ao longo dos anos que prometiam ser uma competidora de Facebook, Instagram ou Twitter e que não deram em nada? Foram muitas. Até mesmo o Google tentou isso com várias ferramentas.
Então, o que foi diferente com o TikTok?
Ter apostado tudo em seu algoritmo de recomendação para fazer a entrega de conteúdo. Uma das coisas mais difíceis para qualquer rede social é atrair usuários porque ninguém quer ser um dos primeiros e ficar falando com ninguém. Criar grafo sociais é um treco complicadíssimo. O TikTok então inverteu a lógica ao não tentar conectar pessoas umas com as outras, mas conectar cada pessoa com um conteúdo mediado por um algoritmo.
Quando um novo usuário abre o aplicativo, a promessa é cumprida. Do nada aparece um vídeo sem que você tenha seguido qualquer pessoa. Basta rolar a tela para ir para o próximo. E o próximo. E o próximo. E com poucas interações, a plataforma reconhece as preferências dos usuários para entregar sempre o melhor conteúdo.
Agora, imaginem um pequeno ajuste no algoritmo para favorecer um certo tipo de narrativa. Qual o impacto isso traria para o funcionamento da sociedade americana? É um questionamento que muitos congressistas norte-americanos fazem.
Todos esses argumentos de espionagem e manipulação são hipóteses, e como qualquer hipótese, podem ser discutidas. No entanto, esse movimento político mais duro dos EUA também passa o recibo de uma nação que já não detém o monopólio do ecossistema digital.
A briga tecnológica entre os dois maiores países do mundo está só no começo. Os Estados Unidos tentam a todo o custo atrasar o avanço chinês impondo restrições de acesso a chips e fazendo esforços para convencer o resto do mundo de que a rede 5G de empresas chinesas é uma ameaça.
A China responde criando estratégias de fortalecimento de desenvolvimento local enquanto contragolpeia as empresas norte-americanas com mais restrições. Na última semana, a Administração do Ciberespaço da China, uma espécie de órgão regulador da Internet no país, ordenou que vários aplicativos fossem removidos da Apple Store, incluindo Whatsapp e Threads. A medida foi entendida como uma retaliação antecipada ao banimento do TikTok por Washington.
A China sempre fechou o seu ciberespaço atrás do "Grande Firewall" para evitar a influência de plataformas ocidentais, então não é uma novidade que o governo chinês bloqueie novas aplicações. O fato relevante nessa história é os Estados Unidos forçarem a venda ou o banimento de uma aplicativo comunicacional, o que parece ir contra a essência do que pregam sobre liberdade e livre mercado.
Essa é uma situação tão confusa que até mesmo os lados políticos inverteram suas posições em um ano eleitoral de disputa acirrada por lá. Donald Trump, que foi um dos maiores críticos da plataforma e chegou a assinar uma Ordem Executiva para banir o TikTok quando era presidente, agora se mostra contra a proibição.
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Quero receberNa segunda-feira, ele postou em sua conta na Social Truth atribuindo ao presidente Biden a total responsabilidade do banimento da plataforma.
Apenas para que todos saibam, especialmente os jovens, o desonesto Joe Biden é o responsável por banir o TikTok. Ele é quem está pressionando para fechá-lo, e está fazendo isso para ajudar seus amigos do Facebook a se tornarem mais ricos e dominantes, e capazes de continuar a lutar, talvez ilegalmente, contra o Partido Republicano
Donald Trump
Essa mudança no comportamento do ex-presidente norte-americano é motivada por vários motivos. De acordo com matéria do Washington Post, um deles é a sua antipatia com Mark Zuckerberg e todo o ecossistema da Meta, e outro é a sua relação próxima com lobistas ligados a um bilionário do partido Republicado que tem grandes investimentos na ByteDance, a empresa dona do TikTok. Claro que também não podemos deixar de considerar o seu aceno aos mais jovens durante um ano eleitoral.
A opinião pública nos Estados Unidos também vem mudando. O apoio ao banimento da ferramenta retraiu consideravelmente nos últimos meses. Ainda de acordo com pesquisa da Pew Research Center, a parcela da população americana que apoia o banimento da plataforma caiu de 50% em março de 2023 para 38% em outubro do mesmo ano. Os indecisos saiu de 28% e foi para 35%, e quem se opõem ao banimento subiu de 22% para 27%.
As pessoas contrárias à proibição dizem que o banimento fere diretamente a Primeira Emenda que protege a liberdade de expressão. E esse é o argumento que o TikTok planeja usar para contestar a lei. A discussão central é se o governo federal pode ou não proibir uma plataforma sob alegação de segurança nacional mesmo que isso possa ferir a liberdade de expressão.
Fato é que a lei está sancionada, e agora a batalha será comercial e jurídica. Não temos certeza quem irá tentar comprar o TikTok. Nem se será banido. Mas entramos em um capítulo em que os Estados Unidos sabem que perdeu a sua hegemonia e está disposto a lutar com as armas do inimigo que tanto criticou.
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