Diogo Cortiz

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Opinião

Vivemos diante de uma geração ansiosa, mas a culpa é do smartphone?

Estamos criando uma geração de crianças ansiosas e precisamos agir imediatamente. Esse é o argumento de "A Geração Ansiosa", livro que está entre os mais vendidos na lista do "The New York Times" e reacendeu o debate sobre os efeitos do smartphone no desenvolvimento e qualidade de vida das crianças.

Para Jonathan Haidt, professor e autor do livro, a saúde mental das crianças está se deteriorando rapidamente. E os dados apresentados por ele são alarmantes. Nos Estados Unidos, de 2010 até 2022, a depressão entre meninas e meninos subiu 145% e 160%, respectivamente. A ansiedade teve um salto de 139% no mesmo período.

Uma das possibilidades para o aumento nesses indicadores é a maior conscientização sobre a saúde mental e o aumento de diagnósticos. Pensando nisso, Haidt também olhou para outros dados. A quantidade de meninas que visitaram a emergências do hospital por lesão autoinfligida também teve um aumento de 188% desde 2010, enquanto a taxa de suicídio subiu 167%.

Embora o autor não tenha citado especificamente o Brasil, a tendência segue parecida por aqui. A Folha de S. Paulo publicou uma matéria mostrando que os registros de ansiedade entre crianças e jovens superaram os de adultos pela primeira vez no país.

De acordo com dados da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) houve um crescimento expressivo dos atendimentos de ansiedade na última década. No ano passado, a relação de adolescentes diagnosticados atingiu a marca de 157 a cada 100 mil, enquanto entre as pessoas acima de 20 anos a taxa ficou em 112 a cada 100 mil. Os dados de suicídio também são chocantes. De 2000 a 2021, houve uma alta de 221% entre as meninas e de 170% entre os meninos.

Os dados não deixam dúvida. A geração ansiosa é real e há algo de errado afetando crianças e adolescentes. Mas o que?

Haidt atribui essas consequências ao smartphone e às mídias sociais. Em todos os gráficos que preenchem as páginas do seu livro, existe uma tendências inequívoca: todas as linhas que mostram o crescimento de ansiedade, depressão, autoflagelação e suicídio embicam para cima a partir de 2010, momento em que os smartphones e redes sociais começam a se popularizar.

Essa mudança de comportamento, que afeta em algum grau todas as pessoas, é ainda mais impactante para quem está na fase de desenvolvimento. Haidt argumenta que a base da infância migrou da brincadeira offline (corporificada, síncrona e em comunidades difíceis de entrar e sair) para a conectada (descorporificada, assíncrona e em comunidades fáceis de entrar e sair). E essas mudanças de comportamento levam a quatro danos fundamentais:

  • Privação social
  • Privação de sono
  • Fragmentação da atenção
  • Dependência
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Além de mostrar dados e argumentar durante todo o livro que o problema central está nos smartphones e mídias sociais, Haidt apresenta quatro principais ações que a sociedade deveria tomar para mitigar os danos para as crianças:

  • Proibir smartphones antes dos 14 anos
  • Proibir redes sociais antes dos 16 anos
  • Proibir smartphones nas escolas
  • Estimular a autonomia e o livre brincar durante a infância

Eu sei que as sugestões são polêmicas e que, para cada uma delas, eu poderia escrever uma série de artigos de discussão. Fato é que o livro como um todo, apesar do grande sucesso, não é unanimidade e sofre críticas de pesquisadores que apontam falhas.

Ninguém questiona a existência de uma crise de ansiedade na geração Z. Contra fatos não há argumentos. O que muitos pesquisadores criticam é o caminho que o Haidt fez para chegar à conclusão de que tudo é culpa de smartphones e redes sociais.

O argumento do livro é construído a partir de muitos estudos correlacionais, com apenas alguns experimentos. Se tem uma coisa que todo aluno aprende na primeira aula de qualquer curso de metodologia científica é que correlação não é causalidade.

E foi isso que o autor fez ao longo de muitas e muitas páginas: traçar uma linha do aumento dos diferentes sofrimentos psíquicos da humanidade e correlacionar com o momento temporal da popularização de smartphones e mídias sociais.

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Talvez a voz mais crítica ao livro seja a de Candice Odgers, professora de psicologia da Universidade da Califórnia, Irvine, que escreveu uma dura resenha para a revista científica Nature. Odgers argumenta que as evidências são ambíguas sobre o tempo de tela ser o culpado pelo aumento dos níveis de depressão e ansiedade entre adolescentes — e a histeria pode nos distrair de encontrar outras possíveis causas.

De fato, demais pesquisadores dizem que Haidt ignorou outros possíveis fatores: a geração Z é a primeira com perspectivas econômicas piores que seus pais e está enfrentando as consequências diretas e de expectativa das mudanças climáticas.

Se tem uma coisa que sempre falo para meus alunos de mestrado e doutorado é que, pelo amor de Deus, eles não devem descrever causalidade quando só encontraram correlação. Então, seria difícil não aceitar como válidas as críticas ao livro.

Embora não possamos traçar causalidade entre os smartphones e redes sociais com a crise de saúde mental, não significa que esses artefatos digitais estejam fora da equação. Existe uma série de estudos experimentais que demonstram que as mídias sociais afetam nossa percepção de mundo, o processo atencional e a autoestima.

E a coisa pode ficar pior.

O principal argumento de Haidt é que houve uma grande reconfiguração de 2010 a 2015, principalmente por causa do uso de smartphones e redes sociais. O lance é que as plataformas que ele cita já nem funcionam mais da mesma forma. E é aí que a situação pode ficar mais complicada.

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Hoje, as mídias sociais fazem uso intensivo de algoritmos e um design projetado para prender os usuários dentro de um loop de conteúdo de onde não é fácil nem para um adulto sair. Imagina para uma criança. Escrevi no ano passado uma coluna discutindo que o algoritmo limita o nosso livre-arbítrio.

O jornal "Wall Street Journal" cunhou há dois anos o termo "TikTok Brain" para descrever os efeitos cognitivos e comportamentais do uso excessivo da plataforma de vídeos curtos. O que era para servir de alerta não teve nenhum efeito. Pelo contrário, as plataformas concorrentes (Instagram Reels e Youtube Shorts) copiaram a mesma dinâmica para neutralizar o adversário enquanto sequestram a atenção de seus usuários. Precisamos debater a atual forma de funcionamento das redes sociais.

Haidt respondeu aos questionamentos de Odgers em sua newsletter. Ele argumenta que seu trabalho está longe de ser baseado apenas em estudos correlacionais e que trabalha com uma lista de 22 estudos experimentais.

Por fim, finaliza dando um recado a quem ele chamou de cético: se eu estiver errado, qual prejuízo para as crianças se minhas sugestões forem adotadas?

Agora sou eu que pergunto: e, se ele estiver correto e não fizermos nada, quais serão as consequências?

Deu Tilt

Toda semana, Diogo Cortiz e Helton Simões Gomes conversam sobre as tecnologias que movimentam os humanos por trás das máquinas. O programa é publicado às terças-feiras no YouTube do UOL e nas plataformas de áudio. Assista ao episódio da semana completo.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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