Diogo Cortiz

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Opinião

IA consegue reconhecer nossas emoções? 'Divertida Mente' pode dar uma pista

Eu amo quando as metáforas visuais conseguem explorar com sutileza os aspectos da subjetividade humana e nos fazem pensar sobre a nossa própria natureza. E as animações da Disney e Pixar fazem isso como poucos.

Em "Ratatouille", tem uma cena em que o ratinho Remy rouba pedaços de queijos e morangos em uma cozinha. Ao mordê-los, é automaticamente transportado para um novo universo, imerso em imagens e contornos coloridos.

Para a maior parte da audiência, a cena era apenas uma composição lindíssima da animação, mas tinha uma outra dimensão científica implícita: a sinestesia, fenômeno que acontece quando a estimulação de um sentido provoca a experiência em outros sentidos. Tem pessoas que veem cores quando escutam música ou que sentem gosto ao ver cores. No caso de Remy, o paladar ativou sensações visuais e auditivas.

Em "Divertida Mente", as metáforas são menos sutis e se materializam de uma maneira mais evidente. As emoções viram personagens que habitam a cabeça de humanos para controlar seus comportamentos e reações corpóreas. É uma animação divertida que cumpre um papel importante para contar como as emoções são elementos importantes da nossa existência.

Um dos paradigmas que ainda guia a sociedade ocidental é a de que a razão deve guiar nossas ações, afinal, as emoções podem comprometer o nosso julgamento. Tem até um termo para isso. "Homo economicus" é um conceito que influenciou as ciências econômicas e sociais ao descrever humanos como agentes puramente racionais que buscam a todo tempo maximizar seus ganhos.

Mas isso é uma falácia. Não existe o tal do "homo economicus" porque as emoções estão o tempo todo guiando os nossos comportamentos.

"Divertida Mente" manda bem ao mostrar que podemos até regular as nossas emoções, mas elas estão sempre ali, presentes, nos influenciando e nos fazendo ser quem realmente somos.

No entanto, as metáforas têm suas limitações. Para conseguir facilitar a nossa compreensão de conceitos complexos ou abstratos, podem acabar simplificando o conceito original. Se isso é algo que acontece até em metáforas científicas, não tem como escapar em uma animação roteirizada para o público infantil.

"Divertida Mente" reduz a complexidade do jogo emocional ao colocar cada emoção como um elemento separado. Alegria, raiva, nojo, tristeza, medo etc. são personagens independentes que existem por si só e habitam a cabeça de todas as pessoas, influenciando seus comportamentos de maneira parecida. Por exemplo, basta o personagem Raiva apertar alguns botões para que a resposta seja parecida entre todos os humanos.

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Essa é uma inspiração em uma abordagem científica que chamamos de Teoria das Emoções Básicas e Universais, que influenciou por décadas o estudo sobre ciências afetivas. É uma perspectiva que defende a existência de um conjunto de emoções básicas que são compartilhadas entre as pessoas independentemente da cultura. Essa teoria também sugere que cada emoção está associada com uma expressão facial específica.

Essa perspectiva científica influenciou não somente o roteiro de "Divertida Mente", mas também o desenvolvimento tecnológico. Durante muitos anos, pesquisei sobre Computação Afetiva, uma área da computação que estuda como detectar e representar as emoções humanas em sistemas inteligentes. Muitas das pesquisas e produtos que existem hoje são baseados nesta proposta de que as emoções são básicas, universais e que cada uma tem uma expressão facial associada.

Só que tem um problema.

Um conjunto de evidências científicas mais recentes estão contando uma outra história.

Parece que esse papo de emoções inatas e universais não é bem assim.

A neurocientista Lisa Feldman Barrett é um dos nomes que defende uma outra abordagem sobre o estudo das emoções. Com uma vasta produção científica na área, ela argumenta que as emoções passam por um processo de construção em que a linguagem e a cultura influenciam todo processo. E ainda, de acordo com ela, parece não haver garantias que uma expressão facial signifique sempre a mesma emoção.

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Por este motivo, ela é uma das vozes mais críticas em relação ao uso da IA (inteligência artificial) para detectar a subjetividade humana. É inegável que a IA seja excelente para classificar o tipo de uma expressão facial, por exemplo, se uma pessoa está sorrindo. O problema é que não existe uma ligação obrigatória e direta entre os movimentos dos músculos da face e um estado mental, uma emoção.

Há dois anos, eu tive o privilégio de organizar um painel em um evento da ONU (Internet Governance Forum) para discutir sobre as potencialidades e as fragilidades da Computação Afetiva. A professora Lisa Feldman Barrett foi uma das participantes, juntamente com pesquisadores da Microsoft que trabalhavam com a temática, além de outros acadêmicos.

Um dos resultados foi a conclusão unânime de que é arriscado usar IA para classificar emoções em larga escala. Naquele mesmo ano, a Microsoft, detentora de um dos principais softwares para reconhecimento de emoções, aposentaria o seu sistema alegando falta de evidência científica para o seu funcionamento.

O desafio é que com o avanço dos agentes de IA, o desejo incontrolável de tentar reconhecer a subjetividade humana volta com tudo. No anúncio da versão "omni" do GPT-4, por exemplo, o agente humanizado da OpenAI demonstra reconhecer as emoções dos usuários em vários momentos da apresentação. O mesmo está acontecendo com outros sistemas.

É importante lembrar, mais uma vez, que a IA, na verdade, reconhece padrões de tom de voz e expressões faciais para tentar associar a uma emoção específica. No entanto, as emoções não são tão claramente definidas como os personagens de "Divertida Mente". Elas são mais como entidades fluidas, sem fronteiras bem definidas, que se misturam e são influenciadas pela linguagem e pela cultura.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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