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Felipe Zmoginski

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Celular e reconhecimento facial inibem protestos na China

Programadora utiliza tecnologia de reconhecimento facial - Rawpixel.com/Freepik
Programadora utiliza tecnologia de reconhecimento facial Imagem: Rawpixel.com/Freepik

25/12/2022 04h00Atualizada em 26/12/2022 10h22

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A Anistia Internacional denunciou, esta semana, que cidadãos chineses envolvidos em protestos contra a política de Covid Zero no país estão sendo abordados por autoridades locais e pressionados a não participar, novamente, de manifestações e atos públicos. De acordo com a organização, os manifestantes não foram presos ou processados, mas sofreram intimidação.

Alguns dos depoimentos narram visitas de policiais à casa de pessoas suspeitas de participar de atos públicos, com interrogações sobre onde estavam no dia dos protestos. Em outros casos, há relatos de ameaças explícitas: um eventual novo envolvimento em manifestações não seria "perdoado", resultando em ação judicial e prisão.

Embora a repressão a dissidentes não seja uma novidade no país, o tema é relevante por ser a primeira vez, nas últimas três décadas, que cidadãos comuns, não envolvidos com política, são alcançados pelo braço punitivo do Estado. Diversas fontes, inclusive de embaixadas de países aliados a Pequim, descrevem os protestos como os maiores no país desde 1989.

A diferença para os dias atuais, no entanto, está no arsenal tecnológico construído na China, que permite às autoridades centrais vigiar e identificar quem desafia seu poder. A mais poderosa delas é o reconhecimento facial, um recurso onipresente em todas as cidades. Se você se hospeda em um hotel, compra um chip de celular ou faz pagamentos com o aparelho, inevitavelmente cede os dados biométricos de seu rosto. Para abrir uma conta bancária, por exemplo, ou tirar uma identidade nova é preciso registrar seus dados faciais.

A tecnologia é eficiente, diminui fraudes, melhora as condições de segurança pública e traz muitas comodidades no dia a dia. Você pode usar apenas seu rosto para pagar a conta de um restaurante ou liberar catracas de metrôs e ônibus (o valor é descontado de sua "mobile wallet") e entrar e sair de prédios sem precisar de crachá físico.

O mesmo recurso, porém, permite que autoridades identifiquem em uma multidão de manifestantes o nome, a identidade, o endereço e todos os dados pessoais de um cidadão, como efetivamente ocorreu nos protestos de novembro e dezembro deste ano. Há alguns truques usados por quem sai às ruas. Os mais simples são o uso de bonés e óculos com lentes espelhadas, o que diminui dramaticamente a acuidade dos algoritmos de reconhecimento. Outros, mais sofisticados, envolvem o uso de máscaras realistas e maquiagem especial.

Mesmo para esses casos, no entanto, há recursos tech para identificar manifestantes. Como, por exemplo, levantar os dados de todos os celulares localizados no lugar de um protesto. Há quem "desligue" a localização GPS de seu smartphone nesses momentos, o que por si só é suspeito, mas, mesmo assim, por meio de técnicas de "triangulação de antenas" é possível estimar a posição de um dispositivo. O cruzamento de todos esses dados ajuda a suprir as dúvidas eventualmente levantadas pelos algoritmos de reconhecimento facial.

Em qualquer época, regimes centralizadores sempre encontraram formas de identificar quem os desafia, mas o avanço tecnológico alcançado pela China tornou esse processo altamente eficiente e de dificílima escapatória.

A encruzilhada do Covid Zero
Deve-se reconhecer que o uso de tecnologias digitais foi muito efetivo para o controle da pandemia na China. Por meio dos QR codes de saúde, que usavam a localização dos celulares, era possível alertar cidadãos que haviam tido contato com pessoas que testaram positivo, bem como identificar, em tempo real, novos focos de contaminação. Em um período em que não havia vacina ou mesmo tratamento conhecido para a enfermidade, a ação radical de isolamento e controle executada na China impediu que milhões de pessoas adoecessem.

Dois anos após o início da pandemia e com o vírus sob relativo controle, no entanto, o preço da política de restrição à circulação de pessoas veio à tona, com a queda no ritmo de expansão econômica e uma progressiva impaciência da população submetida a intermináveis controles. Em cidades com Guangzhou, por exemplo, era impossível fazer coisas simples, como entrar em um shopping ou tomar um metrô, se você não tivesse um teste negativo em mãos feito há, no máximo, 48 horas.

Note que Pequim segurou o relaxamento das medidas, mesmo com o crescimento dos protestos, até a consagração da terceira eleição do atual presidente, Xi Jinping. O objetivo, não declarado, era não dar demonstrações de "fraqueza" às vésperas da sucessão política. Realizado esse ato, começou-se o relaxamento.

A "encruzilhada" chinesa se dá em função de o país não ter assegurado o esquema vacinal completo a toda sua população. Como em outras partes do mundo, uma parte dos cidadãos recusa-se a tomar o imunizante. Mais: sabe-se que as vacinas chinesas, majoritariamente feitas com base no método de "vírus inativado", têm eficácia modesta. Ou seja: o relaxamento no controle vai causar muitas infecções e mortes.

Ainda que, percentualmente, as mortes sejam baixas, quando você multiplica esse indicador pela gigantesca população de 1,4 bilhão de pessoas, o número de óbitos pode atingir a casa do milhão. Se isso acontecer, seria desmoralizante para as autoridades centrais. Afinal, tantas restrições para colocar tantas vidas a perder dois anos depois? A conferir.