Meta é pega no tiroteio por posto de xerifão da IA no Brasil
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Você já teve uma semana ruim? Antes de responder, veja o caso da Meta. A dona de Instagram, Facebook e WhatsApp saiu da cama na segunda com expectativa de ver bombar seu assistente pessoal com inteligência artificial. Seria o primeiro contato de muito brasileiro com a tecnologia que gera conteúdo como se um ser humano.
Muita gente se encantou com os poderes do ChatGPT, mas é um público restrito. A escala é outra quando a IA generativa chega ao WhatsApp, ainda mais em um dos três países que mais usa o app no mundo. Brinquei no podcast Deu Tilt da semana, mas não encontro comparação melhor: sucesso é quando até o "bom dia" mandado no grupo da família for criado com IA.
No entanto, o caldo entornou. E não foi pouco: a Meta foi barrada de treinar sua IA com os dados públicos que circulam em sua plataforma, algo a que virtualmente até concorrentes têm acesso. De quebra, entrou na mira do Cade e Ministério da Justiça. Também colunista de Tilt, Carlos Affonso Souza já esmiuçou a motivação regulatória —mas, se você quiser e tiver tempo, retomo mais abaixo. Gente séria defende a medida. Mas o momento da decisão é fortuito demais para deixar passar: há um tiroteio em curso entre as candidatas a xerife da IA no Brasil, e a Meta parece ter sido pega no fogo cruzado.
Ter uma IA na palma da mão, instalada em apps super populares e que fala português pode ser o primeiro contato de muitas pessoas com um LLM. O ChatGPT serviu para dar uma cara para o debate sobre IA, que deixou de ser abstrato para ter um exemplo bem concreto. Mas o acesso ao ChatGPT, por mais badalado que tenha sido, não se compara ao número de dispositivos com WhatsApp e Instagram instalados no Brasil. Podemos ver agora uma segunda onda de entendimentos e confusões, de oportunidades e de riscos no uso das ferramentas de IA.
Carlos Affonso Souza, diretor do ITS-Rio e colunista de Tilt
O que rolou?
A semana da Meta começou a desandar na terça, quando:
- ... a ANPD (Agência Nacional de Proteção de Dados) suspendeu a coleta de dados públicos para a Meta treinar sua IA. E não acabou aí, pois...
- ... o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor, mandou notificação à empresa para receber explicações sobre a prática. Esse é o primeiro passo de um processo administrativo que pode culminar em multa milionária. Na quinta...
- ... o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômico) instaurou inquérito para investigar o uso compulsório de dados. Ou seja...
- ... Uma prática só, enquadrada como afronta à privacidade, ao direito do consumidor e à livre concorrência.
Sob o ponto de vista jurídico-reputacional, a chegada da IA da Meta, com a atualização da sua política de privacidade, foi negativo. Em linha com outros reguladores, a ANPD considerou, a princípio, que a empresa não foi transparente. Pelo contrário, implementou o que se chama de design manipulativo, já que a sequência telas, para o usuário se opor ao uso de seus dados ao treinamento da IA, era longo e uma maratona de quase 08 (oito) passos. Esse caso mostra que precisamos olhar para a antessala: ter uma discussão séria e inacabada sobre governança de dados, acoplada a de IA
Bruno Bioni, fundador e diretor do Data Privacy e conselheiro do CNPD
Por que é importante?
Na mesma semana, o senador Eduardo Gomes (PL-TO) entregou um novo relatório do PL 2338/2024, que regulamenta a IA no Brasil. Dessa vez, é estabelecido um Sistema Nacional de Regulação e Governança da IA, formado por entidades que organizarão, regularão e fiscalizarão o ecossistema dessa tecnologia no país. Dentre eles, a ANPD foi alçada à condição de xerife da IA. Vai criar normas, emitir certificações e comunicar grandes incidentes.
Até segunda ordem, o texto vai à votação na semana que vem dentro da comissão temporária criada para analisá-lo. Se passar sem alteração neste ponto, selará a vitória da ANPD no tiroteio que travava com a Anatel (Agência Nacional das Telecomunicações).
As duas não faziam questão de esconder o jogo. No caso da Anatel, o esforço começou ainda quando a pauta era a regulamentação das redes sociais. Já o da ANPD foi mais cirúrgico, com conselheiros e diretores participando ativamente da construção do projeto de lei da IA.
A expansão do acesso à IA pode favorecer oportunidades, mas é necessária cautela para a euforia não ofuscar a ampliação ainda maior de abusos como a violação da privacidade e a exploração comercial dos mais vulneráveis, especialmente de crianças e adolescentes. Sem regulações efetivas, fiscalização, transparência e uma educação robusta para o uso crítico das tecnologias as oportunidades não se converterão em benefícios, mas os riscos podem aumentar e gerar mais danos e desigualdades
Isabela Henriques, diretora do Instituto Alana e conselheira da CNPD
Não é bem assim, mas está quase lá
O veto à Meta é a ação mais espetacular da ANPD até agora. A empresa diz fazer o mesmo que rivais. Ano passado, o Google alterou sua política de privacidade para explicitar que treina sua IA com dados disponíveis na web, o que inclui o YouTube. Microsoft e OpenAI também usam fontes públicas na internet.
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Quero receberCorre nos corredores da Meta a suspeita de que essas empresas já usem dados de Facebook e Instagram para treinar suas IAs. Se a ANPD mantiver a coerência, novos vetos virão por aí.
Hoje, duas turmas começam a se estranhar no debate em torno das regras para IA: uma defende uma regulação pautada na tecnologia e outra olha com mais intensidade para a privacidade dos dados. Com a Anatel virtualmente fora da disputa, em breve o que é desconforto pode virar disputa aberta.
Eu acredito que a chegada da IA da Meta ao Brasil pode confundir o debate sobre regulação e privacidade de dados, colocando em risco a soberania de dados no país. Precisamos de uma abordagem crítica e regulamentações robustas para proteger os direitos dos cidadãos.
Nina da Hora, fundadora do Instituto da Hora
Sobre a Meta usar dados abertos para treinar IA, a ANPD entendeu que:
- não há base legal que permita o tratamento de dados pessoais para treinar AI.
- não houve divulgação suficiente pela Meta sobre a mudança das suas regras.
- usuários brasileiros podia, mas enfrentavam dificuldade para se opor à utilização dos seus dados pessoais (a ação envolvia enfrentar várias páginas, enviar uma solicitação por escrito, responder um email com justificativa, que poderia ou não ser aceita pela Meta)
- dados de crianças e de adolescentes estariam sendo tratados para essa finalidade, em desacordo com o disposto na LGPD.
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