Brasil 2 x 0 Big Tech: os sete dias de derrotas de Google, Meta e companhia
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No intervalo de sete dias, o Brasil foi palco dos dois mais importantes eventos globais do mundo da tecnologia. Não teve lançamento de iPhone, anúncio de nova ferramenta no WhatsApp ou aquisição bilionária.
Tanto o julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre a responsabilização das plataformas digitais por conteúdo de usuários quanto a aprovação do projeto de lei da inteligência artificial no Senado indicam mudanças significativas de rota a respeito do papel das grandes empresas de tecnologia.
Até agora, o quadro que sai disso tudo é desfavorável a elas, porque toca em questões de grande —e imprevisível— impacto financeiro. Por outro lado, na visão de alguns analistas, a tendência é o cenário geral das redes sociais se tornar mais saudável e haver redistribuição de poder —e de dinheiro— para pessoas ou empresas que têm seus conteúdos e dados usados para treinar —hoje, à revelia— os sistemas de inteligência artificial.
O que rolou
Na terça (10), o Senado aprovou o PL 2338/23, que agora segue para a Câmara dos Deputados. E o que o texto estabelece é que:
- As várias IAs enfrentarão um peso regulatório diferente e conforme o potencial de risco que geram. É a chamada regulação assimétrica, já que...
- ... Aquelas que tiverem risco excessivo (armas autônomas e que induzam comportamento nocivo à saúde) estão vetadas, mas...
- ... As de alto risco sofrerão grande escrutínio, a começar por apresentação prévia aos reguladores de seu sistema --ainda que isso seja facultativo-- e maior responsabilização em caso de erros e decisões contestáveis. Estão nesse grupo...
- ... Os sistemas para infraestruturas críticas (rede de eletricidade e abastecimento de água), que ajam na seleção para universidades e os veículos autônomos. Só que...
- ... As regras valem apenas para sistemas comerciais, ficando de fora IAs para pesquisa e fins pessoais. Por outro lado...
- ... As pessoas donas dos direitos de autor podem impedir que as IAs sejam treinadas com seus conteúdos ou exigirem remuneração. Detalhe importante...
- ... O PL da IA atinge empresas de diversos setores da economia, da mineração aos bancos, pois todas terão que reportar suas criações com IA aos reguladores setoriais. Mas são as empresas de tecnologia as mais sensíveis à remuneração aos donos dos dados. São delas os grandes modelos de linguagem e partem delas os investimentos na ampliação dos sistemas que acabam virando insumo básico para companhias de outros ramos. Já no STF...
- ... Nos dias 5 e 11, os ministros Dias Toffoli e Luiz Fux, respectivamente, deram seus votos no julgamento de duas ações sobre a responsabilidade de provedores na internet. Em resumo...
- ... As redes sociais e outras plataformas terão que retirar do ar posts quando a reclamação for sobre proteção da honra, da imagem e da privacidade. Bastará uma notificação. Hoje...
- ... Elas fazem remoções por conta própria, quando uma publicação infringe as regras internas, ou quando são acionadas pela Justiça. Além disso...
- ...As Big Tech passam a ser responsáveis pelo conteúdo que decidem deixar no ar. Como assim? Quer dizer que serão obrigadas a moderar conteúdo e retirar posts que preguem contra o Estado Democrático de Direito, terrorismo, incitação ao suicídio, racismo, violência (contra mulheres, crianças e adolescentes), infrações sanitárias e tráfico de pessoas. Isso ocorre porque...
- ... Elas passam a ter, no jargão jurídico, responsabilidade imediata por conteúdo recomendado, moderado ou impulsionado. E é basicamente o que o algoritmo de muitas delas faz. Não para aí, já que...
- ... Também responderão por perfis falsos, violações a direitos de autor e a "divulgação de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados" -este último, diga-se, é um outro jeito de chamar "fake news".
Por que é importante
As plataformas claramente têm muito a perder com isso, porque vão ter que investir muito mais nos mecanismos de detecção, que elas já possuem
Filipe Medon, professor da FGV Direito Rio
Integrante da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou a regulação de IA que virou o PL 2338/23, Medon explica por que a remuneração por direitos autorais para treinar IA é outra derrota.
A grande discussão em torno do desenvolvimento de inteligência artificial diz respeito aos dados que são utilizados para o treinamento e desenvolvimento. No mundo inteiro, há ações milionárias de empresas que se sentiram lesadas porque outras usaram conteúdo delas, protegido por direito, para treinar seus modelos.
Filipe Medon
O movimento é curioso, nota Medon. O STF age diante de um "cenário de desproteção ou de proteção insuficiente de direitos fundamentais". A situação foi criada por inação do Congresso, "já que o Poder Legislativo, que deveria ser sede para regulamento, não está fazendo". Além disso, esse movimento só ocorre porque a visão sobre as plataformas digitais mudou.
O que a gente vive no mundo hoje é uma transformação no papel conferido às Big Tech, às plataformas de rede social. Na origem do desenvolvimento da internet, especialmente nos EUA, a lógica era que elas não deviam ser reguladas porque a internet necessitava de campo livre para florescer. Só que a internet de 30 anos atrás e as redes sociais de 10 anos atrás não são as mesmas de hoje. Diante desse contexto, as empresas estão sendo convocadas a assumir a responsabilidade pelo que realizam, já que lucram com o conteúdo que compartilham.
Filipe Medon
Já a inteligência artificial enfrenta processo inverso. Ainda que a tecnologia exista há anos, a IA generativa mostra ao mundo seu imenso papel de transformação. E a regulamentação chega justamente no momento inicial dessas mudanças.
Não é bem assim, mas tá quase lá
Medon não hesita em dizer que o julgamento do STF é mais importante do que o PL 2338/23 para o mundo da tecnologia. Há alguns descontos nessa impressão: o projeto ainda será debatido na Câmara, que pode alterar seu teor, e trata só da regulamentação da tecnologia, mas não de como ela será fomentada no país. Esse impulsionamento é papel do Plano Brasileiro de Inteligência Artificial, que prevê R$ 23 bilhões em investimentos.
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Quero receberAcontece que o debate no STF tem o poder de alterar a forma como as Big Tech se comportam imediatamente. A certeza é essa. O que vai vir depois, os cenários futuros, isso é difícil de prever, mas a opinião geral é não parecem muito favoráveis às grandes empresas de tecnologia.
"Pode ser a um só tempo algo extremamente positivo ou extremamente perigoso. A partir do momento em que é responsabilizada pelo monitoramento prévio, a plataforma tende a ter uma conduta mais cautelosa, removendo mais conteúdo", diz Medon.
Em sua coluna no UOL, Carlos Affonso Souza, diretor do ITS-Rio (Instituto Tecnologia e Sociedade), previu um cenário ainda mais catastrófico para as grandes empresas de tecnologia.
A solução que surge agora no STF simplesmente passa a bola para os provedores e deixa que eles sejam responsabilizados tanto pela moderação como pela falta dela. A prevalecer essa linha de entendimento no STF, melhor do que criar uma empresa de sucesso na Internet será processar uma empresa de sucesso na Internet.
Carlos Affonso Souza
Ainda faltam os votos de nove ministros. Mas, até aqui, vai se criando um clima terrível para as Big Tech no Brasil. O julgamento será retomado na próxima quarta (18). O temor das Big Tech é o mundo olhar para tudo isso e se empolgar. Se a moda pegar em outros países, o rombo no bolso delas será ainda maior.
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