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Reportagem

'O sonho está em risco de extinção', diz Sidarta Ribeiro

Não foi passando noites em claro que o ser humano chegou até aqui. Dormir bem foi crucial para nossa espécie evoluir, e os sonhos exerceram papel crucial ao permitir simular realidades impossíveis no mundo real.

Mas esses momentos em que recriamos mundos inteiros dentro da cabeça estão com os dias contados, afirma Sidarta Ribeiro, um dos neurocientistas mais respeitados do Brasil.

O sonho está em risco de extinção. As pessoas nem se lembram do que sonham
Sidarta Ribeiro

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Cofundador do ICe-UFRN (Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte), Sidarta lidera por lá um laboratório dedicado ao sono e aos sonhos como ferramentas cognitivas e de formação de memória.

Algumas das reflexões sobre a relevância do sono já apareceram nas páginas de seu livro, "O Oráculo da Noite" (Companhia das Letras, 2019).

Na entrevista abaixo, Sidarta conta como estamos abrindo mão de um ritual ancestral e por que chegou a hora de levar a maconha medicinal ao SUS (Sistema Único de Saúde).

Sobrevivemos sonhando

O sono é universal. Todos os animais têm sono, um estado de quiescência - ficar quietos em um ou em vários períodos do dia. Mas alguns, além de terem sono de regeneração, para repor moléculas gastas durante o dia ou para liberar hormônios necessários ao desenvolvimento, têm o sono ativo, quando a gente sonha.

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É o sonho que produz recombinação de memórias. É um espaço mental extremamente produtivo: depois de sonhar, é muito fácil ter ideias novas, uma nova estratégia comportamental ou uma nova reação a um desafio. Isso foi muito importante para o acúmulo da cultura humana.

De onde nossos ancestrais tiraram as ideias que os tiraram das cavernas e os trouxeram para o mundo da internet? Isso não aconteceu no mundo da vigília e prestando atenção para não morrer. Aconteceu no mundo seguro das simulações sem consequências para o mundo real, o dos sonhos, onde tudo é possível e é onde inventamos novas possibilidades.

Sidarta Ribeiro, professor e pesquisador do Instituto do Cérebro
Sidarta Ribeiro, professor e pesquisador do Instituto do Cérebro Imagem: Thiago Domingos/UOL

Extinção do ritual ancestral

Nós passamos por quatro a cinco fases de sono REM ("rapid eye movement" ou sono paradoxal), onde a gente tem de quatro a cinco sonhos por noite, pelo menos. Mas a gente quase não se recorda disso. O sonho está em risco de extinção. As pessoas nem se lembram do que sonham.

Primeiro, tem a ver com o desprestígio do sonho. Não é um assunto na vida pública nem na vida privada. Segundo, tem a ver com os nossos hábitos ao despertar. As pessoas estão dormindo cada vez mais tarde, acordando cada vez mais cedo e com aparelhos eletrônicos ligados. E, quando você se levanta muito rápido da cama, aquela memória fica perdida Isso está causando um grande prejuízo cognitivo e emocional.

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Se nós compartilharmos o sonho com quem está a fim de escutar, vamos resgatar um ritual ancestral, importante para o corpo e para o mundo interior.

O sonho do polvo e a sonequinha das crianças

O estudo com maior repercussão mundial foi a descrição pela primeira vez de um sono do polvo, parecido com o REM, no qual a gente sonha. É importante entender isso porque o polvo está a 500 milhões de anos de evolução dos mamíferos em geral.

O fato de eles também terem esse estágio de sono sugere que animais muito inteligentes, com sistemas nervosos muito complexos, precisam desse sono com sonhos para evoluir.

Já outro estudo, eu considero que seja o de mais impacto social produzido aqui no Rio Grande do Norte nos últimos 20 anos. Ele mostra que uma soneca no ambiente escolar pode dobrar a velocidade de leitura para crianças em idade de alfabetização.

Para professoras e professores dos ensinos fundamental e médio, o sono é um inimigo. Mas ele deveria ser ressignificado, porque é um aliado do aprendizado. Ninguém aprende muita coisa com sono.

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No nosso laboratório, a gente tem a preocupação de levar pesquisa básica para a vida das pessoas, e o local em que isso é mais evidente é a alfabetização.

A posição privilegiada do Brasil

Existe uma revolução na biologia, na neurociência e na psiquiatria em torno dos psicodélicos. São substâncias descobertas por povos originários, indígenas -já tem 8 mil anos no caso do peyote- e que a ciência biomédica está redescobrindo no século 21.

Um terceiro de bastante impacto, feito colaborativamente com Unicamp e UFRJ, tratou do potencial cognitivo do LSD. A gente mostrou como o LSD aumenta a capacidade cognitiva de ratos, pessoas e inclusive de modelos computacionais. Não estamos só falando de psicodélicos para pessoas que estão em sofrimento, mas de substâncias que aumentam a cognição de indivíduos saudáveis.

Hoje, o Brasil ocupa uma posição privilegiada nas publicações sobre psicodélicos, atrás apenas de Estados Unidos e Reino Unido. É muito raro a gente estar nessa posição. isso aconteceu porque pesquisadores e pesquisadoras se moveram nessa direção bastante cedo. nosso primeiro estudo foi publicado em 2011, o que nos deu uma certa vantagem competitiva e a gente está tentando aproveitar ao máximo que isso possa durar

Maconha no SUS

Remédios à base de maconha já estão na farmácia há nove anos no Brasil. Mas é para quem tem dinheiro. A discussão hoje é sobre acesso. A gente precisa trazer a maconha medicinal para o SUS, para a Farmácia Viva. O STF interpretou a Lei de Drogas permitindo que as pessoas tenham seis plantas fêmeas em casa sem cometer crime. As coisas estão se movendo, assim como no caso dos psicodélicos. No Brasil, a ayahuasca é legalizada há quase 50 anos.

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Tanto a maconha quanto os psicodélicos estão tendo uma reentrada gloriosa na medicina, porque são substâncias terapêuticas.

A gente tem que lidar ainda com o pânico moral, com as pessoas que têm horror às drogas mas vão às drogarias quase diariamente. As pessoas realmente acreditam que as substâncias legalizadas são mais seguras do que as que são legais. E isso não é verdade. A gente precisa trabalhar e elevar o nível do debate para fazer escolhas que sejam em prol da vida das pessoas.

Reportagem

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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