Topo

Lidia Zuin

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Coisa do além? Como nova tecnologia inspira crenças em magia e religião

Cena de "Poltergeist" simboliza como associamos tecnologia com eventos sobrenaturais ou mágicos - Divulgação
Cena de "Poltergeist" simboliza como associamos tecnologia com eventos sobrenaturais ou mágicos Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

18/04/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

O escritor de ficção científica Arthur C. Clarke ficou conhecido não apenas por conta de seus livros, como "O Fim da Infância", ou pela colaboração cinematográfica com Stanley Kubrick em "2001: Uma Odisseia no Espaço". O autor também propôs frases que se tornaram célebres por resumirem muito bem um determinado conceito, dentre eles o de que qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível de magia.

Essa conexão fica bem clara na arte quando vemos intersecções entre ficção científica e fantasia, desde sistemas de RPG como "Shadowrun" ou então a franquia "Star Wars", em que vemos tanto naves espaciais avançadas como também a Força, que diz mais respeito a um poder fantástico do que uma tecnologia.

Do mesmo modo, o fato de não entendermos exatamente como uma tecnologia complexa funciona também nos faz, de certa forma, seguir um raciocínio mágico ao estilo "O Auto da Compadecida": não sei, só sei que foi assim.

Esse é muito do sentimento que algumas pessoas compartilham com relação às novas iterações da inteligência artificial, como é o caso da ChatGPT-3.

Em um texto publicado no Medium, o engenheiro de software Nabil Alouani traz justamente esse ponto: o hype em cima do ChatGPT, seja ele em sua versão 3 ou 4, tem muito menos a ver com o que a ferramenta realmente é capaz de fazer.

Entre discurso publicitário e funcionalidade efetiva, há muito o que ser discutido sobre modelos de aprendizagem de máquina.

Alouani sugere que, mesmo que não se saiba exatamente o que acontece "por dentro" do modelo, engenheiros sabem muito bem como essa tecnologia funciona:

É como quando você está andando de bicicleta. Você não consegue descrever completamente como cada célula de seu corpo está se comportando, mas você sabe que se trata de algo como equilibrar seu peso.

No caso de modelos como o ChatGPT, o que vemos a tecnologia fazer é um "pastiche", isto é, o ato de imitar o trabalho de outras pessoas e transformar isso em um novo conteúdo.

Alouani afirma que é possível dizer que:

[O ChatGPT] costura palavras para formar respostas plausíveis baseadas nos padrões de texto absorvidos da internet. A palavra-chave aqui é 'plausível'.

Recentemente, li o livro "Haunted Media", de Jeffrey Sconce, uma publicação de 2000, mas que ainda é bastante atual. O pesquisador busca investigar, desde o surgimento do telégrafo até o desenvolvimento da internet, como as pessoas, cultural e socialmente, associam essas novas tecnologias a eventos sobrenaturais ou mágicos.

Sconce menciona, por exemplo, quão disruptiva foi a chegada do telégrafo, que basicamente transformava comunicação em eletricidade a ser transportada por fios e, assim, conectava pessoas que estavam tão distantes —primeiro apenas nos Estados Unidos, depois, no resto do mundo.

Essa "descorporificação" da comunicação fez com que se questionasse a possibilidade de também se comunicar com outros mundos, outras dimensões, uma ideia que se estenderia com a chegada do rádio e a percepção de que havia informação "pairando no ar" através das ondas de rádio.

Segundo Sconce, não é mera coincidência que o Espiriualismo surgiu logo após a chegada do telégrafo e o desenvolvimento do código Morse. As irmãs Fox, conhecidas como fundadoras desse movimento, diziam ser capazes de se comunicar com espíritos através de batidas —uma significando "sim" e duas significando "não", lógica bem parecida com a do código Morse.

A dupla viajou o mundo mostrando seus talentos paranormais em shows, até que, com o tempo, o público passou a ficar mais cético e uma das irmãs chegou a publicar uma carta assumindo que era tudo falso —proposição que, mais tarde, ela iria retirar novamente.

Ao mesmo tempo, porém, outras pessoas também manifestaram suas habilidades psíquicas ou, na realidade, mediúnicas em sessões espíritas (séances). Esse termo é especialmente interessante se considerarmos que essas ocorrências aconteceram durante o desenvolvimento das novas mídias.

A palavra mídia, em si, traz o plural de medium, que quer dizer "meio", isto é, algum aparato (ou pessoa) que faz intermediações..

O rádio é o meio que intermedeia ondas e as transforma em som, do mesmo modo que uma caneta é o meio que intermedeia uma ideia e a transforma em um desenho ou texto que é intermediado pelo papel para se tornar visível.

Ou seja, a definição de meio é bastante abrangente e vai tomar boa parte das reflexões de pensadores como Marshall McLuhan (famoso pela sua afirmação e livro que diz que os meios são nossas extensões).

Para maior simplicidade, vamos nos concentrar apenas nos meios de comunicação, portanto, telégrafo, televisão, rádio, internet etc.

O que Sconce traz em pauta é como meios de comunicação como o rádio suscitaram um fenômeno de "pescadores de ondas de rádio", que eram pessoas que tinham seus próprios kits de rádio caseiros para captar ondas de transmissão.

Em alguns casos, como o de Konstantin Raudive e Hans Bender, esse tipo de investigação ficou conhecida como "fenômeno de voz eletrônica" ou EVP (electronic voice phenomena), que dizia respeito à possibilidade de se intermediar vozes "do além" através das ondas de rádio.

Mais contemporaneamente, "Poltergeist" traz a mesma premissa quando o filme nos apresenta uma família que tem sua filha abduzida por seres que, a princípio, faziam conexão com a criança através da televisão dessintonizada.

Esse é o mesmo meio que a menina usa para se comunicar com os pais depois de ser levada para "o outro lado", enquanto que pesquisadores paranormais montam todo um aparato tecnológico para monitorar possíveis perturbações elétricas na casa.

Pode parecer algo reservado à ficção, no estilo "Ghostbusters", mas a verdade é que até hoje a série televisiva "Caçadores de Fantasmas" (Ghost Hunters) continua se concentrando em investigadores paranormais que usam diferentes apetrechos tecnológicos para medir presenças sobrenaturais em locais considerados mal-assombrados. Se for pesquisar como essa série é classificada, ela não é tida como ficção, mas sim como "reality TV" e "paranormal".

A diferença é que, ao longo do tempo, fantasmas começaram a ficar menos plausíveis para o público, então sendo substituídos por algo muito mais possível como alienígenas —especialmente se considerarmos a proposição do Paradoxo de Fermi.

A famosa transmissão de rádio de "Guerra dos Mundos" realizada por Orson Welles mostra exatamente essa passagem que se estende até hoje, com todas as especulações em torno do que o Pentágono pode estar escondendo.

Assim como no Espiritualismo e no Espiritismo, outras religiões também encontraram nessa "canalização" de mensagens do além uma justificativa para existir, só que através de seres extraterrestres.

Um exemplo famoso é a Cultura Racional, seita que combina ufologia e umbanda e que conquistou o cantor Tim Maia durante um período de sua vida.

Fora isso, também em 1977 houve um incidente no qual o Comando Ashtar (parte de outra seita ufológica) teria interrompido uma transmissão televisiva para se comunicar, através de áudio, com a humanidade.

Tudo isso para chegarmos até o momento atual, no qual somos confrontados por novas tecnologias ainda mais "absurdas" do que a televisão e o rádio, como é o caso da inteligência artificial ou da realidade virtual, por exemplo.

Sconce chega a mencionar essas tecnologias em seu livro, inclusive levando em conta como os anos 1990 foram férteis para esse pensamento "religioso" em torno da internet (ou do ciberespaço) como uma nova fronteira de transcendência.

Assim como histórias do século 19 imaginavam amantes se reunindo no reino etéreo das ondas de rádio, também começamos a imaginar como seria desencarnar na internet —daí a publicação do livro "The Pearly Gates of Cyberspace", de Margaret Wertheim, ou ainda "Ciber Religião", de Jorge Miklos, ou "Homo Deus", de Yuval Noah Harari.

O transumanismo, especialmente em sua vertente extropiana, busca justamente essa transição do corpo biológico para o tecnológico e cibernético.

Então, quando vemos pessoas como Elon Musk trabalhando tanto no desenvolvimento de inteligências artificiais quanto neuroimplantes e carros autônomos, fica a dúvida se realmente estamos falando apenas sobre progresso tecnológico ou uma tentativa de sublimação religiosa, na qual tecnologia se torna esse catalisador esotérico.

Consequentemente, a existência de religiões como a Igreja Transhumanista ou a Associação de Cristãos Transumanistas não é uma coincidência ou uma novidade se considerarmos todo esse contexto histórico entre tecnologia, religião e o sobrenatural.

Portanto, a pergunta que fica é:

  • Quanto do hype que estamos projetando nas novas tecnologias hoje tem a ver com um sentimento religioso e o quanto é algo cientificamente plausível.

Ou, ainda:

  • Se é possível tomar como bússola o argumento do cientificamente plausível quando consideramos a distância temporal

Nossos antepassados do século 12, por exemplo, provavelmente não achariam plausível a maior parte das tecnologias que temos hoje.

Afinal, também o ChatGPT apresenta resultados plausíveis de serem tidos como inteligentes, mas, como afirma Alouani, é apenas pastiche.

Conciliar tecnologia com magia e esperança religiosa nunca pareceu tão difícil quanto tem sido desde o século passado.