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Pergunta pro Jokura

Divisão de trabalho na cabeça: o que cada lado do cérebro faz?

É mito que um lado é mais racional e outro é mais criativo - Pixabay
É mito que um lado é mais racional e outro é mais criativo Imagem: Pixabay

16/12/2019 04h00

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Pergunta de Renato Lobos, de Dois Vizinhos (PR) - quer enviar uma pergunta também? Clique aqui

O Renato ouviu por aí e quer saber se é verdade que quem usa mais o lado direito do cérebro é criativo e quem usa o esquerdo, mais lógico. Cuidado com a polarização, caro cidadão duovizinhense. A questão é curiosa, mas não tem muita lógica, não. Quer dizer, na verdade, até tem lá sua lógica —só não dá para cravar que é verdade.

De meados do século 20 para cá, popularizou-se a ideia de que os hemisférios cerebrais, um à esquerda e outro à direita, são responsáveis por funções específicas —o que realmente acontece— e que ter um cérebro mais ativo em um deles definiria algumas características do indivíduo.

O exemplo clássico é o de que ter o lado esquerdo dominante indica que a pessoa seja mais lógica, racional e boa com números. Ter o lado direito mais ativo, por sua vez, tornaria o indivíduo mais artístico, emocional e intuitivo.

Esse papo começou por volta dos anos 1940, quando o tratamento para casos extremos de epilepsia era cortar o corpo caloso, feixe de fibras nervosas que faz a comunicação entre os hemisférios. Foi observando o desenvolvimento dos pacientes no pós-operatório, com perdas de função ou acentuação de habilidades, que os médicos começaram a notar que o hemisfério direito trabalhava diferente do esquerdo.

Foi um estalo para que esse dado clínico entrasse para os anais da sabedoria popular. A conclusão foi mais ou menos a seguinte: se há funções específicas controladas por lados diferentes do cérebro, logo, há pessoas canhotas e destras, neurologicamente falando.

Veja bem, Renato, não é o caso de negar a existência de pessoas mais inclinadas à lógica e outras mais desenvoltas com a arte. A imprecisão está em atribuirmos essas características a uma suposta dominância de um dos lados do cérebro.

Há inúmeros estudos colocando essa noção popular em xeque. Um deles, da Universidade de Utah (EUA), analisou mais de mil pessoas, entre 7 e 29 anos de idade, e mapeou 7.266 regiões cerebrais para investigar se havia áreas mais ativas em um dos lados da massa cinzenta (lateralização).

Depois de escanear o cérebro de todo mundo com ressonância magnética, os pesquisadores observaram que há redes neurais mais ativas em um dos lados do cérebro para diferentes funções, mas que essas redes ocorrem nos dois hemisférios de um mesmo indivíduo de maneira relativamente equilibrada —ou melhor, quase tudo no cérebro acontece em ampla e dinâmica combinação dos dois lados trabalhando em harmonia.

Ou seja, a lateralização ocorre para determinadas atividades, mas não indicam que o cérebro do sujeito seja mais orientado para a direita ou para a esquerda —sem política envolvida aqui, queridos. #somostodosambidestros.

Na verdade, lá nos estudos dos anos 40, quando cortavam o corpo caloso, algumas funções paravam de funcionar não porque um lado estava responsável por ela, mas porque os dois lados não estavam mais "conversando" para coordenar a tarefa.

A terapeuta ocupacional Keiko Shikako-Thomas (leitora desta coluna), professora e doutora pela Universidade McGill (Canadá), explica que os hemisférios são solicitados para tarefas distintas, mas não exclusivamente.

"A criatividade é muito complexa, envolve diferentes habilidades e áreas do cérebro. Um músico, por exemplo, certamente usa o lóbulo frontal para gerar emoção por meio de uma canção, mas precisa também dominar a técnica da linguagem musical, que é matemática, lógica. Ser criativo, então, sempre envolve conectar os dois hemisférios, reforçando redes neurais que fazem a ponte entre um lado e outro", explica.

De todo modo, hoje em dia o clichê virou nicho de mercado, com testes online, livros de autoajuda e "coaches" se aproveitando dessa suposta polarização neural para vender soluções a quem quer turbinar o cérebro por setores —como se fosse possível.

E a gente cai nessa, basicamente, por dois motivos: porque é mais fácil lidar mentalmente com um cenário complexo inventando soluções simples (tipo explicar que não curte matemática porque trabalha melhor com o lado direito do cérebro em vez de analisar que seu processo de aprendizagem foi prejudicado por uma conjunção inumerável de fatores) e porque, via de regra, essa categorização ressalta aspectos positivos da gente. Quem não adora ser classificado, "avaliado cientificamente", como lógico ou criativo?

No fundo, não abandonamos o mito do "cérebro canhoto vs. cérebro destro" porque sempre acaba soando como elogio. E quem é que anda rejeitando elogio, ainda que fake, não é mesmo?

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