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Pessoas negras e periféricas abraçam a T.I. para combater as desigualdades

Gilmar Cintra mora na Brasilândia, zona norte de São Paulo, e atua como programador - Arquivo Pessoal
Gilmar Cintra mora na Brasilândia, zona norte de São Paulo, e atua como programador Imagem: Arquivo Pessoal

Tamires Rodrigues

28/10/2020 04h00

Conheça os 'devs periféricos', jovens moradores de periferias e favelas que estão tendo a oportunidade de compreender como as questões de raça, classe, gênero e território estão moldando o pensamento e a atuação de uma nova geração de profissionais de tecnologia da informação.

Ao relembrar a infância na Brasilândia, distrito da zona norte de São Paulo, o programador e estudante de engenharia da computação Gilmar Cintra, 32, afirma que o tradicional futebol na quadra com os amigos era deixado de lado para ter os primeiros contatos com a ciência e a tecnologia. "Em vez de ir a uma quadra com meus amigos, a gente ia a uma estação de ciência", lembra.

"Aí surgiu essa paixão por computação. Quando você acha que acabou, que é só aquilo, sempre surgia algo novo", completa.

Mas a paixão pela ciência da computação vem acompanhada de frustração. Cintra acredita que a tecnologia —que poderia ser usada para resolver problemas da sociedade— está, no entanto, sendo utilizada para produzir ainda mais desigualdades sociais, criando uma falsa sensação de evolução e ignorando problemas básicos.

"Famílias ainda passam fome, e tem gente que quer fazer entrega de drone. Primeiro precisamos resolver esses problemas, que são básicos, que não deveriam nem existir", diz o programador.

"Como que vamos para frente se muita gente ainda não tem nem saneamento básico", questiona.

O ambiente universitário que forma os profissionais do futuro é outro aspecto que causa impacto na questão da desigualdade.

A estudante de Sistemas de Informação Gleyce Karen, 19, moradora de Poá, na região metropolitana de São Paulo, conta que a falta de representatividade no curso é um problema que gera impacto no aprendizado. "Todos os meus professores são brancos, em grande maioria homens. Só vejo três professoras mulheres no curso e, reforço, todos são brancos", afirma.

"No curso não há diversidade e isso me entristece, pois não me vejo representada", acrescenta.

Karen se mudou de Poá para Dourados (MS) para estudar na Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul. Ela relata que mora em um bairro rico de cultura indígena, mas foi vítima de racismo dos moradores brancos.

Em 2019, quando chegou à cidade, a estudante estava passando em uma das ruas da região e viu uma senhora olhar em sua direção e falar para uma pessoa próxima: "olha a negrinha". E, em seguida, a moradora deu risada.

Após essa situação, Karen pensou seriamente em desistir dos estudos. "Pensei em voltar para São Paulo e desistir de tudo, mas se desistisse seria menos uma mulher preta ocupando um espaço onde majoritariamente é composto por homens brancos. Então permaneci e resisti, assim como meus ancestrais", diz.

"Acredito que com mais pessoas pretas na área, o povo preto teria mais acesso à internet. Teríamos mais aplicativos voltados para nós, aplicativos que facilitariam ainda mais as nossas vidas", acrescenta.

Karen atribui sua insistência em permanecer na cidade e na faculdade —onde não consegue se reconhecer nos professores e nos estudantes— ao objetivo de desenvolver suas habilidades como programadora.

"Eu gosto muito de programar, desenvolver um software, ver que um programa que eu me esforcei para fazer está rodando bonitinho", diz.

A estudante acredita que esses aprendizados podem mudar as quebradas e seus moradores. "A tecnologia muda o mundo, transforma e ajuda pessoas de várias formas, e eu sempre vi a necessidade de fazer algo pelas pessoas de onde eu vim e no meu território. Encontrei na área de tecnologia da informação essa possibilidade".

Algoritmo e preconceito

Ao falar sobre o possível viés de um algoritmo —que a partir da coleta de dados dos usuários reproduziria preconceitos com a ajuda da inteligência artificial—, Cintra afirma que isso só aconteceria porque a sociedade é racista. "Isso é uma evidência que nossa sociedade realmente é racista, não tem como negar isso", diz.

Uma das propostas do desenvolvedor para lidar com esse tipo de problema é criar programas que aprendem e falam como a periferia. "A única forma seria desenvolver uma inteligência artificial através dos inputs das pessoas que realmente moram em zonas periféricas", afirma.

Ele propõe construir um programa que aprenda o comportamento de moradores da periferia e transforme isso em dados que alimentam uma inteligência artificial. "Se você pegar realmente as pessoas que moram nesses lugares, ou somente as pessoas negras, você consegue desenvolver uma inteligência artificial que não seja racista, porque espera-se que não sejam inputs racistas".

E como as tecnologias podem impactar no desenvolvimento das periferias no futuro? "Eu imagino as comunidades com um projeto de reurbanização, com cabeamento elétrico, fibra ótica, telefonia, tudo embaixo da terra, um sistema de transporte eficiente", imagina o desenvolvedor.

Segundo Karen, um passo fundamental para concretizar esse futuro imaginado para a quebrada é criar uma rede de 'devs periféricos' para construir, disseminar e ensinar novas tecnologias. "Acredito que o meu dever é repassar conhecimento a todos e inserir outras pessoas pretas da periferia e das favelas dentro da área de tecnologia", diz.