Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Opinião: Acesso ao celular não pode definir quem vive ou morre na quebrada
Estudantes de escolas públicas não conseguem acessar o ambiente de ensino remoto; mães chefes de família dividem o celular com filhos entre trabalho, estudos e entretenimento; bancos e casas lotéricas registram diariamente uma série de aglomerações formadas por moradores das periferias e favelas que não conseguem pagar suas contas por meio de plataformas digitais ou receber o pagamento de benefícios sociais do governo.
Esse é o cenário de milhões de brasileiros e brasileiras em seu cotidiano nos territórios periféricos espalhados por todo o Brasil.
Desempregados, atuando no mercado de trabalho informal, dependentes de recursos governamentais para garantir a alimentação básica na mesa ou totalmente excluídos de qualquer forma de geração de trabalho e renda. Essas são características macroeconômicas que definem a cara dessa população vítima da desigualdade digital.
São muitos os cenários que apontam o celular como um divisor de águas na vida de milhões de brasileiros. O impacto é ainda mais profundo na vida da população preta, pobre e periférica, moradora de territórios onde o acesso a internet ainda é um gargalo estruturante para se conectar com o mundo digital.
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - Tecnologia da Informação e Comunicação (PNAD Contínua TIC), divulgada pelo IBGE no início da 2020, apontou que a cada quatro brasileiros que têm acesso à internet, três usam o celular como principal aparelho para acessar a web.
Num contexto regional, a pesquisa TIC Domicílios 2019, publicada em 2020 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), mostrou que as famílias que moram em áreas de maior vulnerabilidade social na região metropolitana de São Paulo usam o celular como principal ferramenta de conexão com a internet.
Nessa região, 61% dos usuários residentes em áreas de baixa vulnerabilidade acessam a internet por meio de celulares e computadores. Já nas regiões com alta taxa de vulnerabilidade social, 70% dos entrevistados usam exclusivamente o celular como interface de acesso à rede.
Já se passaram 16 meses desde o início da pandemia de covid-19 no Brasil, e esse cenário apontado nessas pesquisas que antecedem o período pandêmico, marcado pelas medidas sanitárias de isolamento social, crescimento de crises políticas e econômicas, provavelmente se intensificou, gerando novos danos severos, não somente ao direito da inclusão digital, mas também ao direito à vida.
Aplicações móveis que visam o impacto social em massa estão cada vez mais levando em consideração o baixo consumo de memória e de pacote de dados dos aparelhos, ampliando desta forma o número de pessoas beneficiadas.
Porém, é preciso se ater ao contexto da fome, das situações de extrema pobreza que afetam os moradores das periferias e favelas. Como manter o uso de um celular de forma contínua quando o armário da cozinha não tem um saco de arroz ou de feijão?
Vender o celular na loja de assistência técnica da quebrada para muitas pessoas é uma solução rápida e paliativa para conseguir uma quantia suficiente para comprar mantimentos para a família para três, dois ou até mesmo um dia.
Por outro lado, ter um celular na pandemia significa também ter um meio de se comunicar com parentes, amigos, instituições públicas, trabalho e ações solidárias, responsáveis por garantir a sobrevivência de muitos moradores das periferias e favelas nesse período.
Para participar de uma ação solidária é necessário realizar um cadastro em núcleos comunitários de doações para que cada morador seja comunicado sobre a data, local e horário das doações de alimentos, kit de higiene e marmitex.
Mas como ser beneficiado por essas ações se muitas famílias tiveram que se desfazer dos seus celulares para comprar comida? Como os articuladores comunitários conseguem atingir os moradores que estão incomunicáveis?
Isso passou desapercebido por governos e empresas durante todo o período de maior tensão da pandemia de covid-19. Organizações sociais, coletivos, movimentos sociais e líderes comunitários lidaram com essa situação a todo instante e sentiram na pele o nível da desigualdade digital nas periferias.
O acesso ao celular não pode definir nesse tempo histórico quem vive e quem morre, quem acessa serviços públicos ou quem é excluído por eles.
As próximas pesquisas mostrarão como isso ocorre e ainda poderá continuar acontecendo, a menos que estudos demográficos sejam colocados em prática para embasar a construção de políticas de Estado para reduzir os danos gerados pela pandemia.
É hora das empresas e governos escutarem a sociedade civil e repensar a sua maneira de fazer política pública. O futuro de milhões de moradores das periferias e favelas, pessoas que constroem a história desse país depende dessa colaboração.
* Ronaldo Matos é jornalista, educador e pesquisador de novas tecnologias da comunicação e informação em contextos de periferias urbanas.
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