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Morador apela ao vizinho e até sai da quebrada para ter internet decente
A internet chegou à vida de Gustavo Ricardo, 23, morador do Parque Paulistano, bairro do Jardim Helena, zona leste de São Paulo, em 2012, quando ele completou 15 anos. Como presente de aniversário ele ganhou dos pais o primeiro celular. A partir desse momento, ele começou a explorar o mundo digital.
"É até uma idade bem avançada, porque hoje em dia as pessoas têm acesso à internet desde pequeno e isso não foi uma realidade para mim", afirma.
Oito anos após ganhar o primeiro smartphone, ele conta que até hoje o celular é o seu principal meio de acesso à internet. Ele afirma que na região onde mora o acesso à internet não é amplo, e que muitas vezes os vizinhos recorrem uns aos outros, devido à falta de cobertura.
"Não é uma maravilha a conexão da internet por aqui. Moro num bairro que gerações passadas ocuparam, então desde muito tempo todo mundo se conhece. Se você tem uma relação de afinidade com o vizinho certamente ele vai te emprestar e te ajudar. Essa coisa de emprestar internet é muito comum, você passar a sua senha do wi-fi e o vizinho também passar a dele", diz.
Um estudo recente apontou o Jardim Helena como um dos dez distritos de São Paulo com maior desigualdade digital no acesso à internet. Esse é o cenário apontado pela Associação Brasileira de Infraestrutura para Telecomunicações (Abrintel), que investigou a quantidade de antenas de celular nos distritos paulistanos por habitante.
O Jardim Helena, com 135 mil habitantes, possui uma antena para cada 8.440 pessoas. O estudo mostra que o ideal é que uma estação de transmissão de sinal seja usada por no máximo 2.200 usuários.
Na região de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, há 335 pessoas para cada antena de celular. Ou seja, a abundância de antenas na região distribui um sinal de internet móvel com muita qualidade para os usuários locais.
As experiências de Gustavo com o acesso tardio à internet também fazem parte da história de vida da estudante de moda Andressa Mafra, 22, moradora do Parque Alvorada, na periferia de Guarulhos.
"Comecei a ter acesso a internet a partir dos meus 14 anos. Na época, era aquele computador enorme com a caixa atrás. Depois disso que foi evoluindo para o celular, né", lembra
Quando ela começou a ter wi-fi em casa, o celular ganhou uma função fundamental na sua vida. "Até hoje o celular é o melhor veículo de comunicação para mim, o que eu mais uso, é algo indispensável na minha vida."
Na região metropolitana de São Paulo, 61% dos usuários residentes em áreas de baixa vulnerabilidade acessam a internet por meio de celulares e computadores.
Já nas regiões com alta taxa de vulnerabilidade social, 70% dos entrevistados usam exclusivamente o celular como interface de acesso à rede.
Esses dados são da pesquisa TIC Domicílios 2019, publicada em 2020 pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br).
Educação e internet precária
Para Toni Santos, educador de cultura digital e mestre em ciência da informação pelo CELAC-USP, as desigualdades digitais fazem parte do cotidiano dos moradores das periferias na mesma medida de outras ausências de direitos sociais.
"A gente tem que perceber que a desigualdade social também é replicada no mundo digital, da mesma maneira que as periferias são maioria em desigualdade social com relação a tudo que a gente tem de bens e de necessidades básicas, desde saúde, educação, alimentação, transporte e qualidade de vida no geral", afirma Santos.
Segundo ele, o analfabetismo digital é um dos produtos das desigualdades digitais a ser percebido e combatido no cotidiano dos moradores das periferias.
"A maioria das escolas públicas está no ensino híbrido, e muitos estudantes não conseguem realizar as atividades online. Por quê? Existe um analfabetismo digital que faz com que esse jovem de maneira autônoma tenha dificuldade de acessar os aplicativos do estado e se expressar, se comunicar, fazer as atividades e tirar dúvidas", diz.
Esse cenário faz parte da rotina do estudante da área da tecnologia e morador de Parelheiros, zona sul de São Paulo, Davi Biaggioli, 16. Ele conta que a chegada da internet no bairro faz parte de um cenário precário de idas e vindas. "Foi difícil a gente ter acesso à internet aqui. Teve um tempo que tinha e depois não tinha mais", afirma.
Uma das formas do estudante de tecnologia acessar a internet foi por meio de modem móvel, um meio que trouxe muitos problemas com o passar do tempo. "A gente teve aquele pen drive, que é horrível. Por volta de 2014 a gente recebeu internet, mas dependia do dia"
A alternância da qualidade de sinal faz parte do cotidiano de Davi, que às vezes consegue acessar sites básicos para apoiar os estudos, mas em outros momentos fica sem sinal. "Num dia bom o acesso chega a 6 megas, mas dependendo do dia é 1, 2 ou nenhum mega", afirma.
A solução encontrada pelo jovem é pedir apoio para as irmãs que moram numa região central de Parelheiros, onde a qualidade de internet é melhor. "Minhas irmãs moram no centro e lá tem internet boa, não posso contar com a internet da minha casa, sabe? Se for algo que precise mesmo, tenho que sair de casa. Isso dificulta, principalmente na pandemia", diz.
Com um olhar para o ecossistema de educação e formação de estudantes mais conectado com o ambiente escolar, a doutora em educação e escritora Juliana da Paz, moradora do Capão Redondo, zona sul de São Paulo, afirma que é preciso explicar para a sociedade a diferença entre o acesso à internet e o acesso à educação.
"A escola é uma instituição que deveria proporcionar esse acesso à tecnologia e a internet, contudo, a escola pública ainda não consegue. Nós temos muitas escolas onde a população acessa a educação, mas dentro desse currículo desenvolvido não há um acesso à tecnologia e a internet na escola", diz Da Paz.
Assim como o mestre em ciência da informação, Toni Santos, a doutora em educação considera o analfabetismo digital um dos principais problemas gerados pela falta de políticas públicas para acesso à internet e tecnologia nas periferias.
"O analfabetismo digital faz com que as pessoas tenham um celular, e elas não utilizam nem 10% da capacidade desse celular. Faz com que as pessoas tenham um equipamento para se comunicar e elas ainda gastem dinheiro com outras coisas. Faz com que as pessoas acreditem em fake news", afirma.
"A gente precisa primeiramente criar e desenvolver processos de inclusão digital que sejam efetivos para impactar positivamente não só os jovens, mas os moradores das periferias como um todo", conclui.
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