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Quebrada Tech

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Com limitações digitais, time de jornalistas inova para informar a quebrada

Equipe do "Desenrola e Não me Enrola" produz reportagem na periferia de São Paulo - Evelyn Vilhena
Equipe do "Desenrola e Não me Enrola" produz reportagem na periferia de São Paulo Imagem: Evelyn Vilhena

Ronaldo Matos*

30/04/2022 04h00

Criar soluções digitais e educacionais para combater as desigualdades digitais que dificultam o acesso à informação e a comunicação nas periferias e favelas têm sido o principal desafio enfrentado pelo Desenrola e Não Me Enrola, coletivo de jornalismo e comunicação periférica, nos últimos nove anos.

Produzir jornalismo com acesso limitado à internet é uma realidade no cotidiano de jornalistas e comunicadores das periferias e favelas do Brasil, que motivou o Desenrola e Não Me Enrola criar soluções para combater as desigualdades digitais que comprometem o acesso à informação e o desenvolvimento do senso crítico da população preta e periférica.

Criado em 2013 para investigar as transformações sociais e a identidade cultural dos sujeitos e territórios periféricos, o Desenrola e Não Me Enrola completou nove anos de existência em abril, celebrando um caminho sem volta: o jornalismo brasileiro, que hoje é movimentado pelas plataformas digitais e as redes sociais, precisa da inovação do jornalismo periférico.

"Desconstruímos olhares, narrativas, preconceitos. Informamos e enxergamos além dos fatos", diz o manifesto lançado pelo Desenrola, juntamente com uma campanha de assinatura no Catarse, em celebração aos seus nove anos de fortalecimento do jornalismo, focando em produzir e distribuir informações que representem a diversidade do cotidiano da população preta e periférica.

Registra as hashtags que não entram nas trends das redes sociais, e que são assuntos importantes, que estão na boca do povo na quebrada.

Nos comércios, casas, lanchonetes, campos de futebol, mercados, centros comunitários, farmácias, sacolões, açougues e feiras livres circulam pessoas que respiram e vivenciam um Brasil que precisa ser descoberto e lido por você. Esse é o nosso papel.

Ecossistema

Você come rápido a sua comida? Já sentiu a necessidade de engolir o alimento sem mastigar da maneira correta e teve uma indigestão logo em seguida? Esse é o cotidiano da maioria da população brasileira, sempre correndo contra o tempo. E é assim no jornalismo também.

A velocidade na qual são produzidas e consumidas as informações nos dias atuais faz com que as pessoas não tenham tempo de digerir tanta informação. Isso causa uma série de anomalias sociais na interpretação da realidade que faz parte do cotidiano dos leitores.

É por isso que, desde o primeiro semestre de 2013, o portal de notícias do Desenrola tem servido como uma plataforma de produção de conhecimento sobre o fazer jornalístico nas periferias e favelas, ao colocar em prática uma forma de produção de informação que investiga além dos fatos, em busca de mostrar não só o agora, mas o passado, presente e futuro de acontecimentos históricos.

Essa é a nossa forma de valorizar e inovar a maneira como o leitor vai compreender a informação.

Mas o Desenrola não para por aí. Para ir além das redes sociais e plataformas digitais de notícias, lá em 2014, o coletivo criou o Você Repórter da Periferia, uma escola livre de jornalismo que há oito anos forma comunicadores nas periferias e favelas da região metropolitana de São Paulo.

Encontro com a jornalista Nikole Hannah-Jones, do New York Times - Evelyn Vilhena - Evelyn Vilhena
Encontro com a jornalista Nikole Hannah-Jones, do New York Times
Imagem: Evelyn Vilhena

Esses jovens formados pelo Você Repórter da Periferia ocupam redações de rádios, jornais, portais de mídias independentes e canais de televisão, como Folha de S.Paulo, Estadão, Record, Bandeirantes e tantos outros veículos da mídia tradicional e independente.

Antes de irem para o mercado de trabalho, os jovens atuam na redação do próprio Desenrola, como parte do processo formativo e desenvolvimento profissional.

Além disso, estimulamos essa galera a criar o próprio empreendimento de comunicação nas periferias e favelas, por meio do contato com políticas públicas que incentivam as juventudes a acessar recursos públicos para desenvolver projetos de impacto social e cultural.

O diferencial dessa geração de comunicadores é que eles já chegam nas redações com o nosso DNA de produzir jornalismo nas periferias e favelas.

Além do portal de notícias, outra solução criada pelo coletivo para fortalecer o campo do jornalismo periférico se concentra na criação do primeiro Centro de Mídia Periférica de São Paulo, localizado no Jardim Ângela, zona sul de São Paulo. A iniciativa atua como um espaço compartilhado de trabalho para comunicadores e jornalistas.

O espaço contempla a redação do Desenrola, um estúdio de foto e vídeo, um auditório com capacidade para atender 30 pessoas, e um escritório para reuniões e uso de internet.

A iniciativa é voltada para comunicadores que atuam nas periferias e favelas e empreendem no jornalismo, audiovisual, redes sociais, conteúdos digitais e impressos.

O Centro de Mídia faz parte da estratégia do coletivo de fortalecimento do ecossistema de atuação profissional, trocas de conhecimento e geração de oportunidades de trabalho para moradores das periferias na comunicação.

Coletivo de comunicação produz programa audiovisual para a internet no estúdio do Centro de Mídia - Flávia Lopes - Flávia Lopes
Coletivo de comunicação produz programa audiovisual para a internet no estúdio do Centro de Mídia
Imagem: Flávia Lopes

Audiência

Nesses nove anos, lidamos todos os dias com a dificuldade de crescimento de audiência nas redes sociais e plataformas digitais.

  • Nosso perfil no Instagram tem pouco mais de 4 mil seguidores.
  • No Facebook, temos 6 mil seguidores.
  • No YouTube, ainda não alcançamos 1 mil inscritos em nosso canal.
  • E no Twitter, o nosso público é ainda menor: menos de 500 seguidores.

Incompetência profissional para atrair público ou barreira digital de acesso à informação impactando o nosso trabalho?

Neste contexto complexo de atuação, imagine como é produzir jornalismo com acesso limitado à internet, que não nos permite fazer de forma rápida um upload de vídeo no YouTube, realizar uma entrevista por meio de uma transmissão ao vivo ou até mesmo assistir a um vídeo na timeline do Facebook, que não roda devido a oscilação de sinal de internet móvel.

Esses perrengues que retratam a desigualdade digital que já noticiamos aqui, presente no cotidiano de milhões de moradores das periferias e favelas do Brasil, também faz parte da nossa rotina, pois moramos na quebrada.

 totens digitais - Patrícia Santos - Patrícia Santos
Moradores das periferias e favelas de São Paulo agora consomem notícias em totens digitais dentro de comércios do bairro
Imagem: Patrícia Santos

Para levar as nossas notícias cada vez mais longe, alcançando mais pessoas sem perder qualidade e se adaptando ao seu contexto socioeconômico da nossa audiência, que são os moradores das periferias e favelas, que muitas vezes é repleto de desigualdades sociais, nós nos reinventamos para fazer a informação chegar onde mais precisa.

A Território da Notícia é uma demonstração clara deste propósito: criamos em parceria com outras mídias das periferias (Alma Preta, Periferia Em Movimento e Embarque No Direito), uma solução de distribuição e monetização de notícias, utilizando totens digitais instalados em estabelecimentos comerciais de bairros que possuem pouco ou nenhum acesso à internet, para que o público desses locais possa consumir notícias enquanto passa pelo caixa para pagar as compras.

Atualmente, a iniciativa conta com 25 telas espalhadas pelas periferias das regiões norte, leste e sul da cidade de São Paulo. Mas com o apoio de futuros investidores, vamos levar essa solução para outras cidades e estados do Brasil. Essa demanda é urgente.

Neste nove anos, nós não descansamos em nenhum momento, sempre nos dedicando a promover estudos, debates, desenvolvimento de estratégias e soluções práticas que propiciem aos nossos leitores se atentarem melhor a capacidade dos moradores das periferias e favelas de produzir conhecimento, políticas públicas e novas tecnologias.

Fruto deste trabalho, o Desenrola já foi premiado pelo Google News Initiative, Artigo 19 e Internews, organizações com atuação nacional e global, que valorizam o impacto social do jornalismo, a liberdade de expressão, a difusão de informações confiáveis e a pluralidade de vozes no mundo, pelo fato de o Desenrola apresentar propostas inovadoras que vão além do papel tradicional de informar.

E para você conhecer melhor essas ações inovadoras no jornalismo brasileiro promovidas pelo Desenrola, acompanhe o nosso trabalho aqui na coluna Quebrada Tech e no nosso portal de notícias, e fortaleça o jornalismo diverso e periférico.

* Ronaldo Matos é jornalista, educador, pesquisador de tecnologias da informação e comunicação em contextos de periferias urbanas. É editor do portal de jornalismo periférico Desenrola E Não Me Enrola.