Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Já pensaram em criar apps de consentimento sexual, mas é uma boa ideia?
O assunto começou quase que espontaneamente. Em uma entrevista local que tinha tudo para ser banal, Mick Fuller, um delegado australiano sugeriu que a tecnologia poderia ajudar no combate ao crescente assédio sexual de sua terra natal. "Seria incrível se alguém fizesse um aplicativo que pudesse atestar consentimento. Isso poderia ajudar os júris em situações complicadas", afirmou. A fala, com menos de dois minutos de duração, no entanto, não passou desapercebida. Viralizou.
Rapidinho o papo tomou as redes sociais. Enquanto alguns defendiam a cruzada digital do consentimento, outros ridicularizavam a sacada de Fuller. Tudo em nome da resposta de uma pergunta escancarada: poderia um app desse tipo ajudar no combate à violência? Na modesta opinião de quem vos fala? Absolutamente não.
A ideia é absolutamente tentadora. O conceito não só parece ter saído de uma ficção científica como, de fato, saiu.
A referência que me veio de primeira foi a flopadíssima série Upload, onde, antes de transar, cidadãos têm que declarar em alto e bom som "eu dou consentimento". O ponto é que, nessa mesma série, bicicletas estacionam sozinhas, a temperatura de estações do ano pode ser controlada, e pessoas upam suas consciências em servidores. É tudo de mentirinha.
Na vida real, as situações são bem mais complexas. Principalmente quando estamos falando de assédio sexual.
Quer ver? Vamos lá, na melhor das hipóteses, quantos estupros um aplicativo desse poderia evitar? A não ser que os termos de uso do aplicativo saiam de dentro da tela descendo a porrada em quem ultrapasse uma linha, nenhum. Ué, então essa aceite pode ser usado como? Principalmente para invalidar acusações de estupro. Olha ali, ela assinou que queria transar!
O problema é que consentimento não é tatuagem. Você pode desistir dele a qualquer momento. Depois de ir para a casa do crush, depois de uma carícia ou outra, até mesmo depois que o sexo já tiver começado. Se a pessoa quiser parar e não puder, é estupro. E não importa quantos apps ou vias autenticadas ela deu anteriormente, cravando que estava disposta a dar.
Mas qualquer um que já pegou fila num cartório sabe: quando a coisa está documentada, não importa o que rolou fora das linhas. Para provar que, depois daquela tentativa de sexo anal, você mudou de opinião... putz, vai dar trabalho.
Até porque, sejamos sinceros, vivemos num planeta —e sobretudo em um país— em que casos como o da jovem Mari Ferrer acontecem. Não precisamos da tecnologia servindo para limpar a barra de quem comete crime.
Se isso ainda não te convenceu, podemos até sair do campo da imaginação. Esse tipo de aplicativo já foi até inventado - e por gente muito grande. Em 2011 a administração do governo Obama divulgou iniciativas do tipo, em um movimento chamado "Apps contra o abuso". Mesmo a ONU Mulheres já tentou ações do tipo, mas cedo ou tarde a coisa desandava. E dessa vez a opinião não é nem minha.
"O uso de aplicativos não resolverá muitos problemas antigos com respostas comuns à violência sexual", afirmaram em um documento as pesquisadoras australianas Kathryn Henne, Jenna Imad Harb e Renee M. Shelby, que pesquisaram justamente sobre o uso de aplicativos no combate à violência sexual.
"Nossas pesquisas indicam que os aplicativos de segurança muitas vezes reforçam os mitos de estupro, como a ideia de que a violência sexual é mais frequentemente perpetrada por estranhos. Na realidade, a grande maioria dos estupros é cometida por pessoas que as vítimas já conhecem", acrescentam.
Tecnólogos e desenvolvedores querem contribuir para a redução desse problema? Então invistam em educação. Games, aplicativos, algoritmos que ensinem as pessoas sobre o que é consentimento são muito mais importantes que qualquer rubrica contrato-sexual.
Se a população mundial descobriu, em poucos meses, o significado de termos como "cepa", "variante" e "lockdown", eu aposto que a gente consegue explicar melhor o que é "não", independente do contrato assinado. Até lá, vamos ouvir as vítimas.
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