Topo

Thiago Gonçalves

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Existe uma leitura do filme 'Não Olhe Pra Cima' que me preocupa

Cena de "Não Olhe Pra Cima" - Divulgação/Netflix
Cena de "Não Olhe Pra Cima" Imagem: Divulgação/Netflix

31/12/2021 12h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A essa altura, quase todo mundo já assistiu o filme "Não Olhe Pra Cima", do diretor Adam McKay. É uma crítica interessante ao conflito de interesses inerente à comunicação da ciência e a relação entre cientistas, esfera política e empresários — algo que se tornou evidente com a pandemia.

No entanto, um aspecto do filme me incomodou e me deixou um pouco preocupado com a possível repercussão da mensagem. Aproveito para avisar que o leitor pode ter calma: esse texto não contém nenhum grande spoiler sobre o filme.

A história, como podemos ver no trailer, é sobre a descoberta de um cometa que vem em direção à Terra, com o potencial de destruir o planeta. Os personagens de Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence, responsáveis pela descoberta, tentam avisar o governo do perigo iminente, enfrentando resistência e descrença por políticos e mídia, ao menos no primeiro ato do filme.

A mensagem, para mim, parece óbvia. No plano das políticas públicas, evidências científicas são descartadas em favor de curas milagrosas como a hidroxicloroquina e a ivermectina. Governos ignoram alertas sobre o aquecimento global, sem tomar atitudes firmes que possam reduzir a emissão de gases que contribuem para o efeito estufa, privilegiando interesses financeiros particulares.

Ainda assim, vi muita gente nas redes sociais defendendo o filme fazendo um paralelo estranho com as vacinas: DiCaprio e Lawrence representariam os "cientistas" que alertam para o suposto perigo das vacinas contra a covid-19. É uma distorção alarmante.

O grande problema, a meu ver, é a percepção do consenso científico. É verdade que os cálculos dos astrônomos haviam sido verificados por colegas, mas na minha opinião o filme mostra o esforço para avisar o governo como uma empreitada de um pequeno grupo, o que abre espaço para a apropriação do tema pelo movimento anti-vacina.

Devemos lembrar, no entanto, que os casos satirizados na obra são resultado da construção prolongada do conhecimento, defendidas não por um grupo pequeno de cientistas mas sim por praticamente toda a comunidade acadêmica — salvo por um seleto grupo de negacionistas que convenientemente descartam uma parte dos dados para defender um ponto de vista ideológico.

O debate sobre a eficácia das vacinas não é científico, mas político. O método científico, que deveria embasar a discussão, é jogado pela janela em uma dialética recheada de falácias e falsas dicotomias.

Um passo importante do combate às fake news científicas, a meu ver, é a conscientização do público (e às vezes até de alguns colegas universitários) de como funciona a construção de um modelo científico, diferenciando o ceticismo e o debate legítimo do puro negacionismo sem fundamento. Se somos todos cientistas, devemos jogar com as mesmas regras, e a discussão deve estar baseada em experimentos, observações e metodologias rigorosas.

Caso contrário, tornamo-nos uma nação de cegos, tateando às escuras tentando encontrar uma saída para os problemas que nos afligem.