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Na Coreia do Sul, ambiente tóxico e violento na internet leva vítimas ao suicídio

Getty Images/iStock
Imagem: Getty Images/iStock

Seul

19/02/2022 04h00

"Feminista que odeia os homens", "doente", "você devia virar comida para cachorro". A ativista Kim Ju-Hee suporta todo o tipo de insulto e assédio no ciberespaço da Coreia do Sul, que levam, impunemente, cada vez mais vítimas ao suicídio.

De estrelas do K-pop a figuras menos conhecidas, como um jogador de vôlei que tirou a própria vida este mês, a crise de cyberbullying neste país asiático se agrava, e as vítimas não veem saída, alertam ativistas.

Em um país com um machismo muito arraigado, onde um candidato à Presidência pode denegrir o feminismo, e comentários misóginos proliferam em fóruns da Internet, os assediadores podem arruinar a vida de outras pessoas, sem qualquer consequência.

O YouTube é uma plataforma-chave. Um vídeo atacando a ativista Kim teve centenas de milhares de visualizações e gerou milhares de comentários que incluíam ameaças de morte.

"Sempre me sinto insegura", admite Kim, que trabalha como enfermeira, em entrevista à AFP.

"Sinto que isso nunca vai acabar, a menos que eu tire minha vida e desapareça", desabafa.

Este mês, o jogador de vôlei sul-coreano Kim In-hyeok cometeu suicídio, após ser brutalmente ridicularizado nas redes sociais, alvo de uma enxurrada de comentários de ódio e de boatos de que seria gay.

Em janeiro deste ano, a YouTuber BJ Jammi pôs fim a sua vida, após anos de abuso durante os quais "trolls" (aqueles que se dedicam a atacar e desestabilizar discussões online) rotularam-na de "feminista que odeia os homens".

Em mensagem publicada em sua conta no Twitch para anunciar a morte da jovem, seu tio atribuiu a tragédia a uma "grave depressão causada por comentários maliciosos e a boatos".

A mãe de Jammi já havia se suicidado em 2019, uma tragédia que sua filha também atribuiu ao assédio virtual, em uma transmissão ao vivo no Twitch, na qual reconheceu ter problemas de saúde mental.

"Aos que me deixam comentários de má-fé, é divertido me fazer sofrer e destruir minha vida?", questionou nessa transmissão de 2020.

Assédio lucrativo

Segundo especialistas, as contas antifeministas sul-coreanas no YouTube, algumas com centenas de milhares de seguidores, aproveitam-se deste assédio.

"Os youtubers famosos ganham mais atenção, postando vídeos denunciando o feminismo e as feministas", explica a pós-graduanda Jinsook Kim, da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, em entrevista à AFP.

Mulheres e pessoas de grupos minoritários na esfera pública são particularmente vulneráveis a esses ataques, afirmam os especialistas. Além disso, a falta de leis antidiscriminação no país deixa as vítimas ainda mais expostas.

"Não foram assédios aleatórios", e sim, apontados e acusados de ser "gay, ou feminista", ressalta Jinsook Kim, referindo-se aos casos do jogador de vôlei e da youtuber BJ Jammi.

Outras mulheres na esfera pública viram suas informações pessoais divulgadas online por youtubers que as acusaram de odiar os homens. Alguns até transmitiam ao vivo enquanto seguiam sua vítima e faziam-lhes ameaças de morte e de estupro. Com isso, geraram mais visualizações e mais receita.

"Continuam produzindo conteúdo de ódio e sensacionalista com fins lucrativos", completou Jinsook Kim.

E, até agora, muito poucas ações legais conseguiram ser bem-sucedidas contra estes "trolls". Em um país ultraconectado e com uma das melhores velocidades de Internet do mundo, mulheres famosas sofrem assédio online há décadas.

Em 2008, a proeminente atriz Choi Jin-sil cometeu suicídio, abalada pelos boatos espalhados na rede de que trabalhava como agiota.

Em 2019, a estrela do K-Pop Goo Hara também tirou a própria vida, depois de ser ameaçada com "pornografia de vingança" (do inglês "revenge porn") por um ex-namorado. Semanas antes, sua amiga e companheira Sulli também havia sido encontrada morta, após sofrer vários ataques online por, entre outros motivos, não usar sutiã.

Vítimas negligenciadas

Em geral, suicídios de celebridades após sofrerem cyberbullying provocam uma profunda comoção e petições às autoridades para mudar a situação. Apesar disso, poucos passos foram levados adiante até agora.

Conhecida por sua sociedade extremamente competitiva, a Coreia do Sul tem uma das maiores taxas de suicídio do mundo desenvolvido.

Qualquer pessoa "percebida como diferente da norma" corre o risco de sofrer um ataque virtual do qual é difícil se recuperar, disse à AFP Raphael Rashid, jornalista e comentarista online em Seul.

As vítimas de assédio virtual sentem que "não têm para onde correr", uma vez que seu perfil público está arruinado e "a sociedade não vai tolerar sua existência", acrescenta.

A ativista Kim afirma que esses ataques a levaram a pensar em suicídio.

"É como se todo mundo virasse as costas para você", desabafa.

A menos que a lei e a Justiça peguem esses "trolls" virtuais, é inevitável que mais suicídios vão ocorrer, alerta Kim.

Por enquanto, acrescenta, "o 'cyberbullying' para somente quando a vítima morre".