América Latina enfrenta desafio de manter talentos tecnológicos
Montevidéu, 23 Mar 2022 (AFP) - A sensação de insegurança no Rio de Janeiro e um salário polpudo convenceram o engenheiro de software Bruno Ribeiro a se mudar para a Califórnia, o grande polo tecnológico dos Estados Unidos, cujas empresas estão recrutando cada vez mais latino-americanos.
Há poucos anos, Bruno trabalhava à distância e não tinha planos de emigrar, mas um episódio o fez mudar de opinião.
"O auge foi numa noite em que eu e minha esposa vimos quatro assaltos. A gente não queria ver essa violência tão perto dos nossos filhos", contou à AFP o engenheiro de software em sua casa em Los Angeles, onde trabalha para a gigante do entretenimento Disney.
"A grande mudança é que as pessoas preferem hoje em dia ficar no Brasil trabalhando para empresas de fora devido à depreciação da moeda", opina o brasileiro de 39 anos.
A digitalização da vida cotidiana fez disparar a demanda global por engenheiros de software, desenvolvedores e programadores, uma tendência que se consolidou com a pandemia.
Agora, a escassez geral destes profissionais é "enorme", destaca Diego Bertolini, diretor de recursos humanos na agência de marketing digital Raccoon.Monks.
Para captar esses talentos, as empresas internacionais "estão sendo extremamente agressivas em termos salariais e de benefícios", o que representa um grande desafio para a região, afirmou Bertolini à AFP.
Este apetite reconfigurou o mercado de trabalho ao apagar as fronteiras tradicionais e incorporar cada vez mais a contratação remota.
O resultado desta equação: ao fim de 2022, haverá um déficit de 48% de mão de obra digital para satisfazer a demanda da América Latina, segundo a empresa de consultoria internacional PageGroup, especializada em recursos humanos.
- Salários em dólar -O impacto econômico da pandemia causou a desvalorização das divisas latino-americanas, o que tornou as ofertas de trabalho das empresas no exterior ainda mais atrativas.
Trabalhar em casa com salários em dólares ou euros se tornou mais conveniente do que deixar o país, e permite que as companhias "de fora" economizem seus custos.
"Convém a todos: a mim, a eles. Estou feliz, eles estão felizes", diz a boliviana Adriana Zegarra, de 44 anos, programadora autodidata que trabalha para uma empresa canadense sem sair de sua casa em frente ao pico nevado Illimani, em La Paz.
"Os contratos para consultores internacionais para meu cargo variam entre 2.000 e 3.000 dólares mensais", explica à AFP. "Aqui tem ministros que ganham isso!".
Uma empresa boliviana "para fazer o mesmo me pagaria três vezes menos", acrescenta.
Nesse sentido, as grandes perdedoras acabam sendo as milhares de startups pequenas e médias que lutam para nascer e crescer na região, mas que se deparam com a dificuldade de manter seus funcionários.
É o caso de Jhon Montevilla (39), amigo de Zegarra e empreendedor em tecnologia. Ele quis abrir uma plataforma de anúncios no estilo da OLX e do MercadoLivre para o mercado boliviano, mas o aplicativo nunca foi ativado.
"Quando precisamos investir em marketing, os recursos já tinham ido embora nos salários para tentar ser competitivos" com o que empresas similares em mercados maiores oferecem, conta.
Diante desta realidade, empresas emergentes ou consolidadas da América Latina têm optado por capacitar trabalhadores, alguns com pouca ou nenhuma experiência prévia.
"A gente não consegue trazer pessoas com formação pronta ou próxima do que a gente precisa, então tem um grande esforço interno para que isso aconteça", explica Bertolini, que, contudo, ressalta que "as empresas lá fora aproveitam esse momento também".
"Enquanto a gente está aqui treinando e as pessoas ficam prontas, vem uma proposta muito melhor, e a pessoa não pensa duas vezes antes de aceitar", frisou.
- Em busca de habilidades -Um exemplo desta dinâmica é o uruguaio Guzmán Freigedo, de 31 anos, que acaba de ser contratado pela companhia holandesa Picnic, um supermercado online, como engenheiro de redes.
Em seu trabalho anterior, a empresa "precisava de alguém mais experiente". "Eles praticamente me treinaram no primeiro ano para tudo o que eu teria que fazer depois", conta. Três anos depois, ele deixou a companhia para receber em Amsterdã "entre três e quatro vezes" mais do que ganhava em Montevidéu.
No Uruguai, o setor tem uma demanda não atendida de 5.000 técnicos, "um número que aumentou nos últimos tempos", disse à AFP Matías Boix, vice-presidente da Comissão People Talent da Câmara Uruguaia de Tecnologia da Informação.
Já no Brasil, espera-se que, entre 2021 e 2025, a demanda de profissionais de tecnologia da informação chegue a quase 800 mil, segundo a Brasscom, a associação das empresas do setor. Atualmente, 53 mil pessoas se formam por ano no setor, mas o mercado tem uma necessidade anual de 159 mil profissionais, acrescenta a associação.
De acordo com a companhia especializada IDC, a região da América Latina cresceu 8,5% no mercado de tecnologia da informação em 2021, e este ano alcançará uma expansão de 9,4%.
Embora alguns observadores alertem para a defasagem das universidades e das políticas públicas na América Latina em termos de capacitação tecnológica, nos últimos cinco anos, a força de trabalho de TI da região cresceu cerca de duas vezes mais rápido que a dos Estados Unidos, segundo o PageGroup.
Para Sarah Stanton, do Programa de Educação do Centro de Especialistas do Diálogo Interamericano, o setor privado e as instituições estatais devem trabalhar juntos e, inclusive, estabelecer intercâmbios regionais para enfrentar esses "desafios de habilidades", que são essenciais para avançar.
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