Nem CLT, nem autônomo: o projeto de lei que quer 'regrar' a relação de aplicativos com trabalhadores
Na esteira do chamado 'Breque dos APPs', projeto propõe um novo regime para regular a relação entre profissionais e plataformas de serviços: o trabalho sob demanda.
Na esteira do chamado "Breque dos Apps", mobilização de entregadores de aplicativos responsável por protestos em várias cidades no começo do mês, um Projeto de Lei (PL) da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP) propõe um novo regime para regular a relação entre profissionais e plataformas de serviços: o trabalho sob demanda.
Em geral, aplicativos como Uber e iFood se definem como empresas de tecnologia que fazem apenas a intermediação entre clientes e prestadores autônomos.
Algumas companhias até estimulam a regularização dos trabalhadores como Microempreendedores Individuais (MEIs). Mas, na prática, a informalidade ainda é expressiva.
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Em 2019, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estimou cerca de 4 milhões de brasileiros trabalhando em aplicativos.
Com a crise econômica e a pandemia de covid-19, especialistas acreditam que esse número tenha crescido.
"A recente greve do Breque dos Apps deixou evidentes as condições precárias de trabalho. Entregadores de bicicleta, por exemplo, recebem em média R$ 950 (mensais) para trabalhar 12 horas por dia", afirma Tabata Amaral.
"O objetivo é justamente dar regramento a essa relação, o que ainda não foi feito e traz um vácuo jurídico imenso tanto para as empresas quanto para os trabalhadores, pois a legislação e as políticas públicas atuais seguem insuficientes para garantir um grau mínimo de proteção social a esses trabalhadores", acrescenta.
Basicamente, o PL 3748/2020 estipula um valor por hora - que não pode ser inferior ao piso da categoria ou ao salário mínimo - e incorpora à remuneração total um pagamento proporcional de férias e décimo-terceiro.
Além disso, estende aos profissionais sob demanda alguns benefícios, como seguro-desemprego e salário-maternidade.
O texto também estabelece obrigações a serem cumpridas pelos aplicativos. As empresas passariam a contribuir para a Previdência e a fornecer Equipamentos de Proteção Individual (EPI). Também ficariam proibidas de descredenciar profissionais sem justificativa.
"O PL cria uma figura híbrida entre um autônomo completo e um trabalhador sob o regime pleno da CLT [Consolidação das Leis Trabalhistas]", analisa Renato Bignami, auditor fiscal do Trabalho e doutor pela Universidade Complutense de Madri.
"Isso já existe no direito europeu desde a década de 1990. Na Itália, ele é chamado de 'para-subordinado' e na Espanha é conhecido como 'autônomo economicamente dependente'", complementa.
Seguro de vida e máscaras
No dia 08 de julho, representantes de entregadores de todo o país se reuniram em uma live com o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Na ocasião, apresentaram uma pauta de reivindicações: preço mínimo para corridas, fim dos desligamentos arbitrários e melhores condições de trabalho.
Maia se comprometeu a avaliar os projetos de lei sobre o tema que já tramitam na casa para construir um texto único.
Um PL de autoria de Ivan Valente (PSOL-SP) determina que as plataformas de delivery ofereçam materiais de higiene, como máscaras e álcool em gel, para a prevenção à pandemia de covid-19.
Já Rubens Otoni (PT-GO) assina propostas que obrigam as empresas a contratarem seguro de vida e a fornecerem EPIs para os trabalhadores - conteúdo semelhante ao de um projeto protocolado por Bira do Pindaré (PSB-MA).
A iniciativa de Tabata Amaral, no entanto, cria um marco legal mais abrangente que pode ser estendido a outras categorias, para além de entregadores e motoristas.
Já existem aplicativos para contratação sob demanda de faxineiras e garçons, por exemplo. Por inaugurar um novo regime de trabalho, paralelo ao da CLT, a ideia divide opiniões.
Estevão Mallet, advogado e professor da Universidade de São Paulo (USP), considera "equilibrados" os termos do PL - Mallet advoga para a Uber, mas afirma que falou à reportagem apenas na condição de acadêmico.
"As regras propostas estabelecem direitos adequados para a proteção mínima dos trabalhadores, sem sujeitar forçadamente a relação jurídica ao modelo da CLT", afirma.
Ele destaca a proibição de as plataformas aplicarem punições, caso um trabalhador rejeite um serviço. Também ressalta a possibilidade de caracterização do vínculo empregatício, "caso demonstrada a ausência de liberdade para a aceitação do serviço pelo trabalhador, a exigência de exclusividade ou de tempo mínimo de dedicação à plataforma".
O advogado Maurício Pessoa, sócio-fundador do escritório Pessoa Advogados, segue a mesma linha de raciocínio.
"A legislação brasileira não conhece modalidades intermediárias entre a relação de emprego e a relação autônoma. A primeira é excessivamente regulada. A segunda carece de regulamentação. Viria em boa hora uma legislação que, sensível à peculiaridade da categoria, pudesse estabelecer tanto direitos como obrigações", afirma.
'Subordinação ao algoritmo'
A proposta de Amaral também é alvo de críticas. Para Rodrigo Carelli, procurador do Ministério Público do Trabalho (MPT) e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no caso dos aplicativos de delivery e de transporte de passageiros, estão presentes todos os requisitos de uma relação de emprego prevista pela CLT.
"No século 21, obviamente não é mais necessário uma pessoa dando ordens. A subordinação pode acontecer de forma automática, por meio de um algoritmo, como já previsto no parágrafo único do Artigo 6° da CLT", diz.
Na visão do procurador, a atual legislação também não é incompatível com a ideia de flexibilidade de jornada.
Carelli ainda classifica de "pegadinha" o sistema de remuneração previsto pelo PL 3748/2020. "O salário é contabilizado apenas pelo tempo de trabalho efetivamente prestado. Ou seja, todo o tempo em que a pessoa está ligada no aplicativo, esperando uma corrida, não é considerado. O PL está na verdade mantendo o sistema, apesar de conceder alguns parcos direitos", avalia.
Disputas na Justiça
Nos últimos anos, uma série de decisões conflitantes na Justiça vem embaralhando o debate sobre a relação entre trabalhadores e aplicativos.
Em dezembro do ano passado, a 8ª. Vara do Trabalho de São Paulo reconheceu a existência de vínculo empregatício entre motoboys e o aplicativo de entregas Loggi, numa ação coletiva movida pelo MPT.
Porém, o mesmo entendimento não foi seguido pela juíza da 37ª. Vara responsável por analisar um caso semelhante, envolvendo o iFood, em janeiro. Ambos os processos seguem em discussão em segunda instância.
No caso específico das plataformas de transporte de passageiros, já existe uma decisão da quinta turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) negando a existência de vínculo empregatício entre a Uber e um motorista.
"É melhor mesmo que a regulamentação seja feita por lei, e não por decisões judiciais, as quais, além de muitas vezes não apresentarem soluções uniformes, dependendo do entendimento de cada julgador, têm o inconveniente de atingir situações passadas, sem permitir que os envolvidos adaptem-se previamente à disciplina posta", afirma Estevão Mallet.
O auditor fiscal Renato Bignami acredita que a regulamentação por meio de lei específica pode evitar o que aconteceu nos debates sobre a terceirização.
"Diante da falta de normas claras que regulassem a terceirização, o STF (Supremo Tribunal Federal) manifestou posição contrária à jurisprudência consolidada da Justiça do Trabalho", afirma Bignami.
Uma súmula do TST impedia que as chamadas "atividades-fim" fossem delegadas a terceiros, autorizando apenas serviços complementares - como limpeza e vigilância. Porém, o STF decidiu em 2018 liberar todo e qualquer tipo de subcontratação.
"Uma regulação adequada para as condições de remuneração e de trabalho prestadas por meio das plataformas, com balizas sólidas para evitar abusos, poderia ajudar a prevenir situação similar", acrescenta Bignami.
Segurança jurídica
"Enquanto ainda paira essa indefinição judicial - e cabe lembrar que nem todos os trabalhadores têm acesso efetivo à Justiça - milhões de trabalhadores estão sem um patamar adequado de direitos e proteção social", afirma Tabata Amaral. Na avaliação da deputada, o novo regime de trabalho sob demanda vai trazer segurança jurídica para plataformas e profissionais.
Porém, Rodrigo Carelli acredita que a proposta pode ter efeito contrário. "Há um discurso ideológico que pretende tratar o direito do trabalho como algo por natureza ruim, que deve ser afastado para gerar segurança jurídica aos empregadores. Sendo que nós sabemos que é exatamente o contrário: quando nós fazemos uma multiplicação de legislações, a insegurança cresce cada vez mais", critica o procurador do MPT.
Já Renato Bignami cita outra preocupação: a possibilidade de que trabalhadores em regime celetista sejam "migrados" para o modelo sob demanda.
"Só quando houvesse demanda é que o trabalhador seria remunerado. Isso poderia abrir uma via suplementar para precarização. Se não houver balizas muito rígidas e claras na legislação que está sendo proposta, esse risco aumenta", pondera o auditor fiscal.
Amaral rechaça a possibilidade de que isso aconteça. Segundo a deputada, o projeto não se aplica a atividades em que o usuário da plataforma escolhe a pessoa responsável pelo serviço. Também não se estende aos casos em que o prestador define as condições de realização do trabalho, incluindo o valor.
"Mais do que se preocupar com migração, o objetivo principal é garantir direitos básicos a esses trabalhadores", afirma a deputada.
Para que o projeto de lei que institui o regime de trabalho sob demanda avance no Congresso Nacional, uma série de questões deverão ser detalhadas.
O advogado Maurício Pessoa ressalta, por exemplo, que é preciso criar regras para disciplinar a recusa de serviço por parte dos trabalhadores. Já Bignami aponta a necessidade de apontar de forma mais clara as fontes de custeio dos benefícios a serem criados por um eventual novo regime.
Também alerta para o fato de que o PL não discute a responsabilidade de outras empresas - como restaurantes e plataformas de e-commerce - que utilizam largamente os serviços de trabalhadores sob demanda. "O Congresso é a arena correta para a discussão dessa nova legislação", finaliza.
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