Como os satélites artificiais podem estar cegando nossa visão do Universo
Imagine ser um astrônomo: passar horas observando novos planetas e estrelas em galáxias distantes, coletando dados dos confins do Universo conhecido pelo homem, monitorando cometas.
Seu horizonte é tão amplo quanto o próprio espaço; você tem alguns dos mais poderosos — e caros —telescópios do mundo à sua disposição... E, ainda assim, algo te impede de fazer seu trabalho.
Isso é exatamente o que acontece com Megan Donahue, que estuda aglomerados de galáxias e dá aula de Astrofísica na Universidade Estadual do Michigan, nos Estados Unidos.
"Ter 100 mil 'estrelas' luminosas, brilhantes e em movimento no céu causa um estrago", diz ela, se referindo à nova frota de satélites lançada para orbitar nosso planeta que já está criando megaconstelações artificiais.
Donahue também preside a Sociedade Americana de Astronomia, cujo relatório mais recente concluiu que "alguns fenômenos certamente não serão descobertos como resultado de uma interferência significativa".
Mas que tipo de observação vital corremos o risco de perder?
"Nós monitoramos os céus em busca de asteroides a caminho de nós", diz ela. "A existência humana está em jogo."
Houston, temos um problema.
'Está arruinando minha pesquisa'
Nas últimas semanas, dificilmente passou um dia sem que mais um satélite tenha sido lançado por uma companhia privada.
A empresa aeroespacial americana Space X já colocou em órbita 650 satélites Starlink de uma frota de 12 mil. A empresa global de comunicações OneWeb enviou 74 de 48 mil previstos. E a Amazon afirma que quer lançar 3.236 satélites próprios.
Uma vez que fizerem isso, essas três empresas sozinhas serão responsáveis por mais de 63 mil novos satélites que vão se somar aos que já estão em órbita.
E isso sem levar em conta que outras empresas na Rússia, China e em outros lugares do mundo também estão planejando lançar seus próprios dispositivos.
Em teoria, isso deveria ser uma notícia boa — o principal objetivo de todo esse maquinário voando por aí é melhorar as telecomunicações na Terra.
Mas há um lado obscuro em ter essas megaconstelações de satélites artificiais: elas cegam os astrônomos.
Alguns segundos do brilho de um satélite podem mandar anos de pesquisa para o lixo, diz Donahue.
Devemos nos preocupar?
Sim, porque o que você aprende estudando galáxias remotas (de que matéria é feita, sua densidade e gravidade) pode abrir caminho para uma tecnologia mais avançada e uma vida mais confortável
Mas, para fazer isso, Donahue precisa primeiro capturar algumas das luzes mais fracas que você possa imaginar — com a ajuda dos telescópios mais especializados.
E este equipamento é extremamente vulnerável a fontes de luz artificiais.
"Enquanto estou tentando acessar a luz fraca de galáxias a bilhões de anos-luz de nós, os satélites artificiais criam enormes rastros de luz superexposta em imagens muito sensíveis", explica Donahue.
Em outras palavras, suas delicadas imagens são queimadas pelo brilho do satélite.
Às vezes, "a exposição completa, geralmente de vários minutos, é arruinada e afeta até as exposições subsequentes usando o mesmo dispositivo", acrescenta.
Intromissão 'catastrófica para a astronomia'
Podemos dizer que os satélites artificiais estão fazendo ''photobombing'' (ato de arruinar uma foto com uma intervenção planejada ou acidental) nas pesquisas astronômicas?
"Sim, é uma maneira de ver as coisas", diz Donahue.
"Estão literalmente criando uma terrível cerca de luz que impede a ciência de estudar o Universo: planetas, asteroides, estrelas, galáxias, tudo!"
Uma grande vítima poderia ser o Observatório Vera Rubin (VRO, na sigla em inglês) — anteriormente conhecido como LSST — que ainda está em construção no Vale do Elqui, no Chile, local escolhido pelo céu imaculado.
"Este novo telescópio é da mais alta prioridade para os Estados Unidos e será tragicamente comprometido por esses satélites", diz Donahue.
"É necessário tomar uma atitude para torná-los menos catastróficos para a astronomia."
'A existência humana está em jogo'
Mas não é apenas seu trabalho que pode ser afetado. "A existência humana é uma das coisas em jogo", afirma Donahue. "Nós monitoramos os céus em busca de asteroides e cometas a caminho".
A probabilidade de um deles atingir a Terra é muito baixa, mas ainda assim é uma possibilidade.
Apenas em setembro passado, dois asteroides com aproximadamente metade do tamanho da Torre Eiffel passaram por nosso planeta a uma velocidade de 13 km/s (rápido o suficiente para percorrer a distância de Nova York a Londres em pouco mais de sete minutos).
A Nasa classifica esses tipos de rochas espaciais como Objetos Próximos à Terra (NEO, na sigla em inglês) e diz que eles são "potencialmente perigosos", porque há uma chance de que suas órbitas se aproximem de uma rota de colisão com a Terra no futuro.
É por isso que a Nasa também monitora constantemente muitos outros asteroides que são considerados um risco — embora as chances de atingirem a Terra ainda sejam muito pequenas — e tem um plano para tira-los do nosso caminho em caso de necessidade.
Mas é por isso que receber um alerta antecipado aumenta seriamente as chances de sobrevivência, diz Donahue. Quanto mais cedo você detectar um objeto se movendo em sua direção, maiores serão suas chances de evitar uma colisão catastrófica.
Poluição do céu noturno
"Quem é o dono do céu e quem deve ter voz para decidir quem coloca luzes brilhantes nele?", questiona Donahue.
As empresas que lotam o espaço com satélites artificiais "arruínam a escuridão para todos na Terra."
Além do risco existencial, podemos perder também inúmeras descobertas emocionantes — e úteis —, acrescenta ela, uma "perda irreversível permanente de oportunidades".
Mas será que os satélites poderiam ser enviados para uma órbita menos problemática?
"Mesmo se cada uma dessas empresas concordasse em usar apenas órbitas baixas da Terra (cerca de 500-600 km de altitude)", diz Donahue, "esses objetos podem ser visíveis, refletindo a luz solar lá no alto do espaço, por horas antes do Sol nascer e depois do pôr-do-sol".
E se essas empresas optassem por usar órbitas de grande altitude? "Aí o problema é ainda pior. Para um observatório como o Vera Rubin, haverá contaminantes em quase todas as imagens registradas nesse período da noite", diz ela.
E não se trata apenas do que acontece no Chile. A questão tem um impacto internacional.
Lembra da primeira imagem registrada de um buraco negro a 500 milhões de trilhões de km da Terra? Nenhum telescópio neste planeta é grande o suficiente para capturar certas coisas que são muito grandes, muito distantes ou ambos.
Mas se você conectar vários dos maiores telescópios ópticos disponíveis ao redor do planeta — como fizeram para o projeto do buraco negro — você está efetivamente criando um megaobservatório, que se alimenta dos dados uns dos outros, assim como do que eles podem registrar, mapeando os céus em um grau que não era possível antes.
"O VRO é parte de um sistema de observatórios", explica Donahue, e outros observatórios terrestres enormes, como os Extremely Large Telescopes (ELTs) e os Giant Magellan Telescopes, contarão com as descobertas do VRO.
Do Chile à Índia, se um projeto falhar, muitos outros estarão ameaçados.
"Não é apenas um observatório, um lugar", afirma a astrônoma, "novos observatórios espaciais como o Euclid e o Nancy Roman Telescope têm planejado fazer uso dos incríveis conjuntos de dados que vão sair do VRO."
Ela lembra que, no fim dos anos 1960, o medo de uma guerra nuclear levou muitos países a assinar algumas leis para regulamentar o uso do espaço e evitar uma catástrofe nuclear, e há alguns regulamentos internacionais limitados sobre o uso de radiofrequência, "mas não há nada no direito internacional que regule diretamente a luz solar refletida".
O futuro da astronomia... e do planeta
Se há tantos satélites rondando a Terra, quanto tempo vai levar até estarmos cercados por lixo espacial? "Já estamos cercados por um pouco de ferro-velho", diz Donahue.
"Há muitas coisas pequenas em órbita sendo rastreadas pela Nasa e outras agências interessadas em não colidir com foguetes abandonados."
"No entanto, essas dezenas de milhares de satélites previstos são muito maiores e mais brilhantes do que o lixo que está lá agora. As colisões são uma preocupação sempre", acrescenta.
Mas Donahue quer ser otimista quanto ao futuro. "Cientificamente, alguns dos nossos maiores avanços na física fundamental vêm de estudos do céu, e do céu noturno em particular", afirma.
"Compreender a natureza da matéria, a gravidade, os buracos negros, o início dos tempos, a produção dos elementos e a existência da energia escura, que representa cerca de 70% da massa-energia do Universo…"
"O que diabos é energia escura, afinal? Se estivermos presos a laboratórios na Terra, nunca vamos descobrir!"
"Espero que possamos chegar a alguma regulamentação, para que as futuras gerações tenham a mesma visão (ou até melhor!) do céu que a gente", acrescenta.
"Minha esperança está no fato de que os engenheiros e até mesmo os líderes dessas empresas não são tão diferentes dos astrônomos e engenheiros de observatórios: somos todos nerds do espaço, muitos de nós fazemos isso porque amamos o espaço."
Para começar, a solução pode estar nas mãos de quem criou essa bagunça.
"O mesmo tipo de pessoa que projeta e constrói espaçonaves e observatórios deve aceitar o desafio de inovar diante dos limites de tempo, custo e espaço."
Então será que a astronomia (e a vida na Terra) vão sobreviver a isso? "Talvez algumas pessoas decidam que não querem ser lembradas pelo fim da astronomia como conhecemos hoje", avalia Donahue.
"E só posso ter esperança de que isso seja um excelente incentivo para fazer a coisa certa."
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