Redes sociais podem ser 'reiniciadas' para ficarem menos tóxicas?
Um projeto da Universidade de Harvard vai explorar se as mídias sociais podem recomeçar do zero para diminuir os prejuízos causados à sociedade e às pessoas.
Uma das formas mais populares para melhorar o funcionamento de um computador travado é apertar um botão e reiniciar tudo. Algumas pessoas esperam que uma reinicialização também possa ser um remédio para resolver os problemas gerados pelas redes sociais.
É isso que o Institute for Rebooting Social Media, criado neste ano, se propõe a fazer nos próximos três anos.
O instituto acadêmico, uma nova iniciativa do Berkman Klein Center for Internet & Society (BKCIS), da Universidade de Harvard, tem um financiamento de US$ 2 milhões (cerca de R$ 10 milhões) de diversas fundações filantrópicas e de pesquisa, como a Fundação John S. e Craig Newmark Philanthropies.
"Embora a identificação dos problemas possa variar, é difícil encontrar alguém defendendo o ambiente atual das redes sociais", diz Jonathan Zittrain, cofundador da BKCIS.
"É importante avaliar e conhecer melhor a evolução das redes sociais", afirma ele, que defende uma reforma completa das plataformas.
De acordo com a análise do BKCIS, as redes sociais não são servem mais ao propósito para o qual foram criadas.
As plataformas inicialmente eram anunciadas como motores da democracia e da disseminação da verdade. Porém, agora elas são vistas de maneira contrária: facilitadoras da disseminação de mentiras, da divisão entre as pessoas, além de causadoras de danos físicos e psicológicos aos usuários.
Em um exemplo recente, as redes sociais foram usadas para estimular o uso de ivermectina e cloroquina como medicamentos para tratar a covid-19, embora não exista comprovação científica de que eles funcionem.
Os especialistas do BKCIS também dizem que as redes sociais contribuíram para a decadência da confiança nas instituições, influenciaram negativamente as eleições de vários países e ajudaram no crescimento de animosidades raciais, étnicas, políticas, religiosas e de gênero.
"Quando as redes sociais surgiram, elas serviam para estimular o pensamento, porque todos em tese teriam uma voz. Porém, claramente algo está errado", afirma Mitchell Marovitz, diretor do programa de comunicação, jornalismo e discurso da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos.
Apesar de seus defeitos, as redes sociais e os ambientes online têm benefícios claros que também vale a pena preservar.
Não há dúvida de que as plataformas, por exemplo, aumentam o acesso a uma vasta quantidade de conhecimento, criam valiosas comunidades auto-gerenciadas e estimulam movimentos culturais importantes.
Parte do trabalho do novo instituto será fortalecer esses benefícios da comunicação online, ao mesmo tempo em que tentar minimizar suas partes prejudiciais.
"Há um consenso, mesmo entre as pessoas que dirigem empresas de mídia social, de que há problemas crescentes com a maneira como interagimos, nos comunicamos e compartilhamos informações", diz Ashley Johnson, analista de políticas da Information Technology and Innovation Foundation.
"Sempre que você reúne milhões ou pessoas, vai amplificar o que há de melhor nelas, mas também o que existe de pior", continua ela.
"Definitivamente, vimos esse movimento e não descobrimos como maximizar o que é bom e minimizar o que é ruim. É nisso que penso quando ouço a frase 'é preciso reiniciar as redes sociais'."
No entanto, a escala e o alcance da mídia social tornarão essa reforma bastante difícil.
"Não é tão fácil como dizer que há um problema em uma empresa e que vamos descobrir como mudar sua cultura", diz Karen Kovacs North, diretora do Programa Annenberg em Comunidades Online da Universidade do Sul da Califórnia.
"Embora as mídias sociais tenham alguns benefícios para as pessoas, as plataformas podem ter alguns efeitos muito prejudiciais", diz John Carroll, analista de mídia e jornalista baseado em Boston, nos EUA.
"De muitas maneiras, elas são estruturadas para explorar as fraquezas das pessoas e são oportunistas para maximizar seu próprio uso", diz ele. "A 'gamificação' e o vício na tela são algo realmente difícil de interromper".
"As redes sociais tendem a ressaltar as diferenças entre as pessoas e a causar indignação e radicalização", diz Craig Newmark, fundador da Craig's List e da Craig Newmark Philanthropies.
"Isso faz parte do modelo de negócios em muitos casos", acrescenta. "Precisamos de locais onde as pessoas escutem umas às outras, onde possam encontrar consensos e trabalhar juntas."
Os arquitetos do projeto de Harvard dizem que um sistema de colaboração está embutido no design do novo instituto. Ele usará uma abordagem multidisciplinar, reunindo participantes da indústria, governo, sociedade civil e academia para construir um portfólio de pesquisas, projetos, programação e oportunidades educacionais para melhorar o espaço social digital.
"Os serviços online são como hidras; se você consertar um problema, outro frequentemente surge", explica James Mickens, professor de ciência da computação em Harvard. Mickens se juntará a Zittrain na liderança do novo instituto.
"Parte do desafio é que muitos dos problemas são multifacetados", explica ele.
"Não são apenas problemas de engenharia e não são apenas questões regulatórias", diz Mickens.
John Sands, diretor de aprendizado e impacto da Fundação Knight, espera que o instituto possa criar um espaço para discussões mais profundas entre pessoas de várias origens.
"Normalmente, as pessoas que precisam discutir e encontrar soluções ficam juntas [por] um ou dois dias nas conferências", explica ele. "Este instituto oferece uma oportunidade para um envolvimento estendido."
Uma abordagem interdisciplinar é necessária se algum progresso for feito no espaço da mídia social, acredita Julian Sanchez, pesquisador sênior do Cato Institute, um think tank de políticas públicas.
"Requer uma abordagem interdisciplinar porque não é realmente, ou pelo menos não apenas, a mídia social que não está funcionando", diz ele. "São a psicologia humana, as instituições e o ecossistema de mídia mais amplo."
"Há muitas coisas que as plataformas poderiam fazer melhor", continua ele, "mas também há alguns danos que podem ser intrínsecos à conexão de grandes grupos de seres humanos".
"Pode ser tentador dizer que esses danos devem ser culpa de algum algoritmo nefasto", observa ele, "tanto porque é mais fácil de consertar quanto porque parece mais agradável do que reconhecer que existem alguns aspectos intrinsecamente ruins da natureza humana. Por isso suspeito que o problema fundamental está do outro lado da tela."
"Isso não quer dizer que é inútil tentar mitigar esses danos ao tentar desenvolver melhores políticas de mídia social, mas acho que devemos ser realistas", acrescenta Sanchez.
Carroll afirma que o maior desafio para iniciativas como o projeto de reinicialização é chegar ao público em geral.
"Esses grupos de pesquisa podem criar ferramentas, abordagens e hábitos que podem ajudar as pessoas", diz ele. "Mas o alcance de um centro de tecnologia na Universidade de Harvard é bastante limitado no escopo geral das coisas."
"Eles têm objetivos louváveis", acrescenta. "A única questão é quão realistas eles são?"
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