Svetlana Jitomirskaya, a matemática por trás da solução para o 'problema dos 10 martinis' da física quântica
A ucraniana Svetlana Jitomirskaya é uma das matemáticas mais importantes da atualidade.
Uma espécie de borboleta cativou por anos a atenção da professora de matemática Svetlana Jitomirskaya. E essa admiração foi um dos fatores que a levaram a aprofundar-se em um problema matemático apresentado em 1981.
"A borboleta de Hofstadter é um objeto extremamente prazeroso de se observar", segundo ela.
Trata-se da representação gráfica de um conjunto fractal, elaborada nos anos 1970 pelo cientista americano Douglas Hofstadter, que desempenhou papel importante na mecânica quântica.
Mas havia um ponto determinante que a atraiu para este problema: "ideias significativas" que ela havia desenvolvido nesse campo. E ela também destaca que a conjectura "tem um nome muito atraente".
Jitomirskaya ajudou a resolver o "problema dos 10 martinis". Este nome surgiu depois que o matemático polonês Mark Kac ofereceu 10 martinis a quem o resolvesse.
Kac não pôde apreciar o feito da professora porque ele morreu em 1984. Mas seu colega americano Barry Simon deu à conjectura o nome que a popularizou.
"Você já tomou algum martini?", perguntei à pesquisadora, que mora nos Estados Unidos. "Tomei martinis, mas não por este problema", responde ela, rindo.
Esta é a história de uma das matemáticas mais importantes da atualidade. Suas contribuições para a física matemática e para sistemas dinâmicos vêm sendo amplamente reconhecidas.
Em julho de 2022, Jitomirskaya recebeu o primeiro prêmio Olga Alexandrovna Ladyzhenskaya, em uma sessão conjunta de duas conferências realizadas durante o Congresso Internacional de Matemáticos.
Filha de matemáticos
Svetlana Jitomirskaya nasceu em Kharkiv, na Ucrânia (na época, parte da União Soviética), em 1966.
Ela fala com admiração da sua mãe, a importante matemática Valentina Borok (1931-2004), que trabalhou com equações diferenciais parciais e, em 1970, tornou-se a única professora titular de matemática da Ucrânia.
"Ela era tão brilhante que eu sabia que eu não era tanto quanto ela", ela conta. "De certa forma, não pensei que conseguiria ter sucesso na matemática porque era muito difícil para as mulheres naquele momento."
"É claro que, especialmente sendo mulher, precisava me sobressair muito", ela conta, "não porque houvesse discriminação, mas porque, apesar de toda a propaganda comunista de que as mulheres eram iguais, toda a sociedade era extremamente tradicional e esperava que as mulheres se encarregassem da família e do âmbito doméstico."
"Minha mãe sempre me dizia que a família era o mais importante", relembra Jitomirskaya.
Embora fosse sua inspiração, ela sabia que sua mãe não queria que ela seguisse o caminho da matemática. E seu pai, também matemático, não a contradizia.
"Meus pais estavam trabalhando em conjunto", afirma ela. "Quando eu era pequena, foi como se eles tivessem tentado, de alguma forma, dissuadir-me de me tornar matemática, pois achavam que era muito difícil para uma menina."
"Pouco tempo atrás, perguntei ao meu pai por que eles desencorajaram a mim e não ao meu irmão. Ele me respondeu: 'foi ideia da sua mãe'. Acho que é verdade, que foi ideia dela de tentar me orientar para outras coisas", afirma ela.
'Uma espécie de milagre'
Jitomirskaya amava a literatura e a filologia. Mas, para ela, a União Soviética não era o lugar ideal para seguir essa paixão, já que esses estudos estavam muito impregnados pela ideologia comunista.
Ela então se apaixonou pela matemática quando começou a estudá-la com profundidade, o que só aconteceu quando ela entrou na Universidade Estatal de Moscou.
"Era um ambiente incrível para uma estudante que estava pronta para absorver tudo e disposta a estudar muito", segundo ela. "E entrar foi uma espécie de milagre porque basicamente eles não aceitavam judeus."
Jitomirskaya conta que se preparou muito bem para o processo de admissão porque os aspirantes judeus recebiam tratamento muito diferente.
"Eles apresentavam problemas muito difíceis, praticamente impossíveis de resolver", ela conta. "Por isso, passei meu último ano do ensino médio preparando-me para esse exame." E, mesmo assim, ela achou que não iria passar.
"De alguma forma, não perceberam que eu era judia", ela conta. Nos documentos, ela constou como ucraniana. Jitomirskaya foi admitida e, com 16 anos de idade, aproveitou todos os recursos educativos disponíveis: "conferências, seminários incríveis".
"Realmente me apaixonei pela matemática e nunca olhei para trás", relembra ela. "Recordo que, no segundo ano do curso, pensei que não conseguia me imaginar estudando outra coisa que não fosse a matemática."
Anos depois, surgiu uma oportunidade acadêmica para seu esposo, que é químico físico, e o casal se mudou para os Estados Unidos. Lá, ela conseguiu um emprego temporário como professora em meio período na Universidade da Califórnia em Irvine e prosseguiu com suas pesquisas.
Atualmente, Jitomirskaya leciona naquela instituição e foi recentemente nomeada professora do Instituto de Tecnologia do Estado norte-americano da Geórgia.
Física matemática
Jitomirskaya explica que um dos pontos centrais do seu campo de estudos é comprovar conjecturas feitas pelos físicos, "ideias que foram entendidas há muito tempo". Mas ela também faz o contrário: "às vezes, refutamos, demonstramos que eles estavam errados, às vezes fazendo novas previsões relacionadas aos modelos físicos".
"É muito emocionante porque, às vezes, são estabelecidas conexões com a vida real, mas nem sempre", afirma ela. "Mais concretamente, trabalho no campo dos operadores quase periódicos."
Esses operadores estão relacionados com a mecânica quântica e o "problema dos 10 martinis" é parte deste campo fascinante.
Desde os anos 1990, Jitomirskaya trabalhou em diversos aspectos dessa conjectura. Ela conseguiu encontrar muitas peças do quebra-cabeça e publicou seus resultados. Até que, em 2003, o matemático espanhol Joaquim Puig "fez um avanço fundamental neste problema". E ele mencionou na sua pesquisa o trabalho de Jitomirskaya.
"Ele percebeu algo muito bonito", segundo ela. "Parecia um pequeno adendo ao meu trabalho anterior, mas foi uma observação brilhante e fiquei um pouco desapontada comigo mesma por não ter visto esse caminho sobre o problema."
'Todos os parâmetros'
Menos de um ano depois, um matemático brasileiro "muito jovem" entrou em contato com ela. Esse menino, em 2014, viria a ganhar a Medalha Fields, também conhecida como o Prêmio Nobel da matemática.
"Artur Ávila me escreveu porque queria me visitar para trabalhar neste problema", ela conta. "Eu já havia visto seu nome porque ele havia publicado dois artigos excelentes."
Jitomirskaya recorda que ele disse: "o problema não está totalmente resolvido até que você decifre todos os parâmetros". Ávila havia observado em uma das suas publicações que ela havia insinuado que poderia obter outro resultado para os "parâmetros restantes".
"E me disse que, se realmente eu conseguisse fazê-lo, poderíamos dar o problema por completo", ela conta. "Disse que poderia ser feito, mas que seria muito difícil, técnico e que tomaria muito tempo." Mas Ávila a convenceu.
Quando começaram a trabalhar "nesta demonstração técnica tão difícil", eles perceberam que precisariam "inventar outros caminhos". E, durante o processo, eles desenvolveram ferramentas, técnicas e enfoques inovadores, que são admirados pelos especialistas.
Eles demonstraram a conjectura e publicaram o resultado na prestigiosa revista Annals of Mathematics em 2009.
Do que se trata o problema?
Daniel Peralta é pesquisador especializado em sistemas dinâmicos do Instituto de Ciências Matemáticas (ICMAT) do Conselho Superior de Pesquisas Científicas (CSIC) da Espanha. Ele conhece o trabalho de Jitomirskaya, que encontrou em vários congressos.
"É sempre muito agradável conversar com ela e ouvir suas apresentações", afirmou Peralta à BBC News Mundo (o serviço em espanhol da BBC).
Ele recorda uma conferência na China, na qual a matemática demonstrou a borboleta de Hofstadter, que representa o espectro dos operadores que ela estuda. Peralta explica que esses operadores surgem em certos modelos que tentam descrever fenômenos físicos do tipo quântico.
"Os operadores de Schrödinger aparecem em muitos contextos de mecânica quântica", explica ele, "e Jitomirskaya estudou principalmente os que surgem no contexto do movimento de elétrons sujeitos a campos magnéticos perpendiculares à dinâmica dos elétrons."
Eles são conhecidos como operadores de Mathieu quase periódicos.
"De forma geral, o operador da mecânica quântica é um objeto matemático, uma regra matemática, que assume uma função de valores diferentes e devolve outra função distinta", explica Peralta.
A chave é entender o espectro do ponto de vista físico, ou seja, ver para quais funções o operador, quando aplicado a elas, devolve a mesma função. E esta, segundo o pesquisador, é uma das grandes diferenças (entre tantas outras) entre a física clássica e a física quântica.
Em princípio, por exemplo, a velocidade de um elétron ou de uma partícula pode assumir qualquer valor na física clássica.
"Mas, na mecânica quântica, existem muitos objetos que são quantificados, não podem assumir qualquer valor e só podem assumir uma série de valores discretos", explica Peralta. "Este fenômeno e o princípio da incerteza de Heisenberg (ou seja, o fato de que certas magnitudes não podem ser medidas com precisão) marcam a principal diferença com relação à física clássica."
A demonstração
Nos anos 1960, os físicos observaram que os valores que este tipo de operador pode assumir dependem da frequência, ou seja, da mudança do espectro quando variam os parâmetros.
"Eles observaram que, quando a frequência era [um número] irracional, o espectro tinha uma estrutura muito estranha, fractal, o que é conhecido como conjunto de Cantor. E isso é apresentado de forma matemática no enunciado dos 10 martinis", afirma Daniel Peralta.
O problema consiste em comprovar algo que os físicos já haviam observado - que, quando a frequência, ou seja, a intensidade do campo magnético para este tipo de operador for um número irracional, o espectro é um conjunto de Cantor.
Muitos pesquisadores trabalharam nesse problema desde os anos 1980 e 90. Puig fez um grande avanço, mas "o ápice de todo este trabalho, de anos e de tantas pessoas, é a demonstração obtida por Ávila e Jitomirskaya".
"Eles comprovaram a conjectura original: para todas as frequências irracionais, o espectro dos operadores de Mathieu quase periódicos é um conjunto de Cantor", segundo Peralta. Assim ficou finalmente resolvido o "problema dos 10 martinis".
* Esta reportagem faz parte do especial BBC 100 Women, que todos os anos destaca 100 mulheres inspiradoras e influentes ao redor do mundo.
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63952430
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