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Na era da curtida, avaliações impactam tanto serviços quanto clientes

Luisa Vera/The New York Times
Imagem: Luisa Vera/The New York Times

Bret Easton Ellis*

15/12/2015 06h00

Em um episódio recente da série “South Park”, Cartman e algumas outras pessoas da cidade que estão fascinadas com o Yelp, aplicativo que permite aos usuários avaliar restaurantes, lembram aos maître d’s e garçons que podem e vão fazer a resenha de suas refeições. Esses “Yelpers” ameaçam dar aos estabelecimentos só uma estrela – de cinco possíveis – se os funcionários não fizerem tudo para agradá-los, exatamente do jeito que quiserem. As casas sentem que a única opção é obedecer aos Yelpers, que tiram proveito de seu poder pedindo pratos de graça e fazendo sugestões de melhoria da iluminação. Os empregados toleram tudo isso com uma frustração e raiva cada vez maiores – a certa altura os usuários do Yelp são comparados ao grupo Estado Islâmico – até que, finalmente, ambas as partes chegam a uma trégua. Sem o conhecimento dos Yelpers, porém, os restaurantes decidem se vingar, contaminando os pratos com todos os tipos de fluidos corporais imagináveis.

Moral do episódio: hoje em dia, todo mundo acha que é crítico profissional (“Todo mundo conta com as minhas resenhas no Yelp!”), mesmo que não tenha a mínima ideia sobre o que está falando – mas ele é também uma crítica sombria ao que se tornou conhecido como “economia de reputação”.

Ao mostrar a vingança dos restaurantes sobre os Yelpers, a série aborda o fato de que, atualmente, os serviços também estão nos avaliando, o que levanta a questão: como lidamos com a maneira com que nos apresentamos online, nas redes sociais? Como os indivíduos “se vendem” nessa nossa cultura corporativa em expansão?

A ideia de que todo mundo acha que é especialista e tem uma voz que merece ser ouvida, na verdade, tornou todas as manifestações menos significativas. O que estamos fazendo é nos estabelecermos como receptáculos – verdadeiros alvos de marcas e roubo de dados. Esse é, porém, o resultado lógico da democratização da cultura e o temido culto à inclusão, que insiste que todos nós temos que existir sob as mesmas regras corporativas, a ordem que dita como devemos nos expressar e comportar.

A maioria das pessoas de uma certa idade provavelmente notou esse detalhe ao fazer parte da primeira corporação: o Facebook, que tem regras próprias em relação à expressão de opiniões e sexualidade. Ele encoraja os usuários a “curtir” as coisas e, porque era uma plataforma onde muita gente se mostrava nas redes sociais pela primeira vez, o impulso era seguir a determinação e apresentar um retrato idealizado de nossas vidas, uma versão mais legal, mais simpática e mais sem graça de nós mesmos.

E foi o surgimento desse culto à “gostabilidade” e a temida noção de “identificabilidade” que acabaram reduzindo todo mundo a um tipo de laranja mecânica neutra, escravizada ao estado de coisas corporativo. Para sermos aceitos, temos de seguir um código de moralidade otimista no qual tudo tem de ser curtido, a voz de todo mundo deve ser respeitada e qualquer pessoa que tiver uma opinião negativa – um não-curtir – deve ser eliminado da conversa. Quem resistir a esse pensamento de manada é achincalhado impiedosamente. Doses absurdas de insultos são dirigidas ao suposto "troll" a ponto de a “ofensa” original se tornar insignificante.

Eu sou avaliado e analisado desde que publiquei meu primeiro livro, aos 21 anos, então esse ambiente para mim é natural. Uma reputação surgiu baseada no número de leitores que gostaram ou não de cada uma das minhas obras. É assim que funciona – o que é até legal. Fui apreciado na mesma proporção em que fui rejeitado, mas tudo bem, porque nunca me envolvi emocionalmente. Ser criticado nunca mudou minha maneira de escrever, nem os tópicos que quero explorar, por mais ofendidos que alguns leitores tenham ficado com minhas descrições de violência e sexualidade.

Como parte da Geração X, rejeitar, ou melhor, ignorar, o status quo para mim sempre foi fácil. Um dos nossos hinos mais poderosos foi “Bad Reputation”, de Joan Jett, de canta no refrão: “Não estou nem aí com a minha reputação/Nunca tive medo de divergências”. Fui alvo desse pensamento corporativo quando a empresa dona da minha editora decidiu que não gostou do conteúdo do romance que fui contratado para escrever e se recusou a publicá-lo baseada em uma questão de “gosto”. (Eu poderia até ter entrado na justiça, mas outra editora acabou se encantando com a obra e publicando.)

Foi um momento meio assustador para a arte – um conglomerado estava decidindo o que deveria ou não ser publicado, o que causou brigas e protestos acirrados de ambos os lados. Era disso que se tratava a cultura: as pessoas podiam ter opiniões diferentes e discuti-las racionalmente. Você podia discordar e isso não era só considerado norma, como também interessante. Era um debate. Isso em uma época em que podia se ter uma opinião – e, sim, um senso crítico questionador e razoável – sem ser considerado 'troll".

Agora todos nós estamos acostumados a avaliar filmes, restaurantes, livros, até médicos, e damos o parecer mais positivo possível porque, afinal de contas, quem quer ficar com pinta de hater? Só que, cada vez mais, os serviços também nos avaliam.

Empresas da economia compartilhada, como Uber e Airbnb, estudam os clientes e ignoram aqueles que não correspondem. Opiniões e críticas fluem em ambas as direções, fazendo com que muita gente passe a se preocupar com a forma como está sendo julgada. Será que a economia de reputação colocará um fim à cultura do escárnio? Ou a filosofia corporativa insossa de autoproteção na base do “curtir” tudo – de ser falsamente educado só para ser aceito pelo grupo – ficará cada vez mais forte? O negócio é fazer mais resenhas positivas para recebê-las?

Em vez de aceitar a verdadeira natureza contraditória do ser humano, com todos os seus vieses e imperfeições, continuamos a nos transformar em robôs virtuosos; isso, por sua vez, leva à péssima ideia – mas a um comércio promissor – de gerenciamento de reputação, no qual uma empresa é contratada para moldar uma versão mais simpática e gostável de Você. A gestão da respeitabilidade é uma questão de manipular o sistema. É uma forma de enganação, uma tentativa de apagar a subjetividade e avaliação através da intuição, pagando um preço alto.

No frigir dos ovos, a economia de reputação é uma questão de ganhar dinheiro. Ela nos força ao encaixe na "sem-graceza" da cultura corporativa e nos faz reagir defensivamente, limando nossas imperfeições para podermos vender e sermos vendidos. Quem quer compartilhar o carro, a casa ou o médico com alguém que não tenha uma boa fama internética? Ela depende de todos manterem uma atitude eminentemente prática e reverencialmente conservadora: fique de boca fechada, use saia comprida, seja discreto(a) e não tenha opiniões.

É mais um exemplo da homogeneização da cultura; no entanto, a prática do pensamento de manada só aumentou a ansiedade e a paranoia porque aqueles que se adequam ao sistema são, obviamente, os mais assustadiços. O que acontece se perderem o que se tornou seu bem mais valioso? A aceitação da economia de reputação é um lembrete odioso do grau de desespero econômico a que as pessoas chegaram e de que as únicas armas de que dispõem para ascender a escada econômica é o prestígio alegrinho e imaculado – que só faz aumentar a preocupação contínua com a necessidade de serem “gostáveis”.

O sentimento de poder, autonomia e autoconfiança não vem de curtir isso ou aquilo, mas sim de se manter fiel a si mesmo, por mais confuso ou contraditório que se seja. Há limites para a exibição de nossas qualidades mais lisonjeiras porque, por mais genuínos e autênticos que achamos ser, ainda assim estamos fabricando algo, mesmo que seja bem fiel que seja à realidade. O que a economia de reputação está fazendo desaparecer são as contradições inerentes a todos nós. Quem revela os defeitos e inconsistências se torna assustador para os outros, é alguém a ser evitado.

Surge um mundo à la “Invasores de Corpos” onde reinam a padronização e a censura, fazendo desaparecer as opiniões contrárias e os “do contra”, espremendo as pessoas no curral que leva a um ideal. Esqueça o negativo, o difícil. Quem quer só isso? Mas e se o negativo e o difícil estiverem ligados ao genuinamente interessante, o atraente, o diferente? Esse é o verdadeiro crime que está sendo cometido pela cultura da reputação: a destruição da paixão; a destruição do indivíduo.

*Bret Easton Ellis é autor de seis livros, incluindo “Abaixo de Zero”, “Regras da Atração”, “Psicopata Americano”, “Glamorama”, “Lunar Park” e “Quartos Imperiais” e a coletânea de contos “The Informers”. É também apresentador do The Bret Easton Ellis Podcast