Saiba o que é a neutralidade da rede e como ela pode afetar os internautas
A votação do Marco Civil (espécie de constituição da internet brasileira) já foi adiada mais de dez vezes. Um dos motivos é o conceito de neutralidade de rede, que estabelece regras sobre o tratamento de informações na web. Para entender o polêmico conceito de neutralidade, o UOL Tecnologia consultou especialistas das áreas envolvidas, que explicam seus posicionamentos e como essa mudança pode afetar os usuários da rede.
O que é a neutralidade de rede?
O conceito de rede neutra foi usado pela primeira vez por Tim Wu, professor de direito da Universidade de Columbia (EUA). A definição dele de neutralidade de rede é “maximizar a utilidade de uma rede de informação pública, tratando igualmente todos conteúdos, sites e plataformas”.
Em outras palavras, a neutralidade prega que todo o tráfego da internet seja tratado de forma igualitária por quem fornece a conexão ao usuário (ou seja, as operadoras de internet fixa e móvel).
Quais são as áreas envolvidas na discussão sobre a neutralidade de rede?
O entrave sobre a neutralidade de rede envolve, basicamente, dois setores: as empresas de telecomunicações (como Vivo, Claro, TIM, NET, GVT, entre outros) que fornecem conexão à internet e provedores de internet (como UOL, Terra, IG e Globo).
Para o primeiro setor, a internet deve ser neutra no que diz respeito a conteúdo, mas as teles reivindicam o direito de vender pacotes fechados de internet (como planos para celular que limitam acesso a redes sociais e sites pré-determinados). Para isso, é necessária a identificação do tipo de informação transferida.
Já os provedores acreditam que a internet deve ser completamente neutra e que a escolha de planos com conteúdos fechados limita a liberdade de o usuário conhecer novos sites, além de impedir que outras empresas de conteúdo digital ganhem espaço no mercado.
Abaixo, a opinião dos setores sobre a questão da neutralidade de rede.
Como funciona hoje a neutralidade?
Provedores
Para Eduardo Neger, presidente da Abranet (associação que reúne provedores e outras prestadoras de serviço na rede), o consenso geral é que as operadoras tratam os conteúdos de navegação do usuário de forma neutra: não existe redução de velocidade ao baixar arquivos P2P (de redes de compartilhamento) ou aumento de banda ao acessar determinada página. Segundo ele, não existe nenhuma lei em vigor que obriga as operadoras a tratar os dados com neutralidade.
No entanto, na internet é comum ver reclamações de uma prática conhecida como “traffic shaping” em planos de internet fixa. Ela consiste na redução da velocidade após o usuário utilizar serviços “pesados”, como vídeo sob demanda ou download de torrents (protocolo de troca de dados, geralmente utilizado para baixar filmes). Apesar dos protestos dos internanutas, as operadoras não assumem que usam este artifício.
Quanto à internet móvel, as operadoras, aos poucos, diminuíram a venda de planos fechados (que não dão acesso a toda a internet, mas a determinadas redes sociais e alguns serviços de e-mail). A maioria estabelece uma franquia de dados para ser gasta durante um período. Ao usar o limite de dados antes do tempo estabelecido, a velocidade cai (caso dos planos pós) ou a internet é interrompida (caso dos planos pré).
Operadoras
Para Eduardo Levy, presidente do Sinditelebrasil (entidade que representa os provedores de conexão), não existe de fato o conceito de neutralidade de rede. Para explicar seu ponto de vista, Levy comentou o recente caso de bloqueio da porta 25 (utilizada para o envio de e-mails), em que, segundo ele, houve interferência na rede.
“Houve um consenso entre o CGI [Comitê Gestor da Internet] e do DPDC [Departamento de Proteção do Consumidor] para que os Procons, quando procurados, orientassem os consumidores a não entrarem com uma ação contra os provedores de acesso por estarem impedindo o envio de e-mails pela porta 25”, disse. A medida do bloqueio da porta 25 visa reduzir o número do envio de spams (http://tecnologia.uol.com.br/noticias/redacao/2012/12/20/envio-de-e-mails-com-configuracao-antiga-sera-encerrado-em-2013-saiba-corrigir.htm).
De acordo com ele, as teles não fazem nenhum tipo de priorização de conteúdo, apesar de haver possibilidade técnica para que isso ocorra.
Opinião dos setores sobre a proposta de neutralidade prevista no Marco Civil
A neutralidade da rede, prevista no artigo 9º do projeto de lei do Marco Civil, diz que “o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados [...]”. O projeto também sugere que o Poder Executivo regulamente os casos em que houver discriminação ou degradação do tráfego por parte das operadoras. Veja a seguir o que os dois principais setores envolvidos no debate acham sobre a proposta.
Provedores
Neger, da Abranet, afirma que a redação do projeto dá margem para as operadoras tratarem os dados dos clientes de forma diferenciada.
“As operadoras sugeriram a inclusão de mudança de tratamento de tráfego [“discriminação ou degradação de tráfego”] por razões técnicas. Isso abre uma brecha para que haja discriminação de conteúdos sob a desculpa de que ‘houve um problema técnico’”, explica.
A questão da brecha, diz Neger, é que as operadoras poderiam, por meio de contratos comerciais com empresas de internet, definir conteúdos e serviços para o contratante, inibindo as pessoas de acessarem outras páginas ou aplicativos novos.
“Se essa lógica existisse há uns dez anos, por exemplo, o Facebook não seria uma rede social tão grande. E, talvez, até o Orkut ainda fosse mais popular hoje em dia”, diz ele. Se a rede não trata os dados de forma igual, as operadoras acabam “blindando” o usuário para que ele use apenas serviços já consolidados, analisou Neger.
Operadoras
Levy afirma que o texto do deputado Alessandro Molon (PT-RJ), relator do Marco Civil, tira a possibilidade de o cliente ter planos diferenciados. Ele também impede que as operadoras tratem de forma distinta pacotes de dados.
Quanto aos planos, o argumento é que os usuários têm diferentes necessidades e que a indústria deve atender a essa diversidade. “Se eu oferecer um plano de R$ 10 ao meu pai com acesso a todos os sites e redes sociais, mas restringir o download de vídeos, ele aceitaria, pois tem medo de baixar este tipo de arquivo”, exemplificou o presidente do Sinditelebrasil.
Ele defende que as operadoras tenham o direito de tratar pacotes de forma diferenciada. Levy cita como exemplo o envio de e-mail e uma conversa em um serviço de voz sobre IP. “Eu posso esperar 30 segundos para uma mensagem eletrônica, mas não dá para esperar todo este tempo durante uma conversa via Skype. Logo, se eu posso diferenciar, é possível priorizar pacotes de uma conversa em detrimento dos de um e-mail.”
O representante das operadoras diz que, se as medidas forem aprovadas de acordo a última versão disponível do texto, o principal prejudicado será o consumidor. Para ele, o preço de acesso à internet pode aumentar, pois as teles deverão investir em infraestrutura (para “fazer com que um e-mail seja entregue na mesma velocidade que uma conversa”) e, fatalmente, deverão repassar os custos ao consumidor.
Cenário ideal de neutralidade
Provedores
Para o representante da entidade que representa os provedores, o melhor cenário é o de neutralidade de rede como princípio da internet no Brasil, sem quaisquer tipos de interferências no que diz respeito ao tráfego dos usuários.
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“As operadoras devem cobrar por velocidade, não pelo conteúdo que o usuário quer acessar ou acessa”, analisa Neger. O argumento é que uma internet sem neutralidade pode tirar o caráter inovador da rede, inibindo, por exemplo, que novos aplicativos tenham sucesso e consigam até desbancar serviços já estabelecidos na internet.
Para a entidade, a venda de planos de internet móvel que priorizam determinados serviços limita as escolhas do usuário.
Operadoras
No cenário ideal proposto pelo Sinditelebrasil, as operadoras têm o direito de oferecer planos diferenciados de acesso à internet (o que inclui pacotes restritos a alguns serviços) e as teles podem diferenciar pacotes de dados.
“O melhor cenário seria se o Marco Civil fosse aprovado com a condição de que a neutralidade fosse regulamentada pelo Executivo”, comenta Levy. Dessa forma, casos específicos (como o do bloqueio da porta 25), poderiam ser analisados por algum órgão do Governo.
Como funciona em outros países?
Na América do Sul, o Chile é um dos países que estabeleceu a neutralidade de rede como princípio básico da internet. Lá, os planos de internet móvel são vendidos com base na quantidade de dados estabelecida na franquia do usuário, como no Brasil. Também há planos com períodos diários, quinzenais e mensais. Um plano de internet 3G com franquia de 2 GB por mês custa aproximadamente R$ 85.
Na Colômbia, há o conceito de neutralidade de conteúdo na lei, mas há também um artigo que autoriza ofertas limitadas a usuários ou segmentos de mercado. É frequente a venda de planos 3G com limite de dados (como no Chile) e “planos ilimitados” com restrições.
Por exemplo: na Claro da Colômbia, há um pacote pré-pago que permite acesso ao Gmail, Yahoo Mail!, Hotmail, GTalk e Yahoo Messenger em um período de 15 dias por aproximadamente R$ 10. Um plano (sem restrição de conteúdos) com franquia de 1,5 GB custa aproximadamente R$ 35 por um período de 15 dias.
Nos Estados Unidos, prevalece o conceito de neutralidade na rede parecido com o do Chile. No entanto, o país tem algumas restrições quanto ao uso de internet móvel em alguns dispositivos. Em algumas operadoras, é comum que o recurso de tethering (de usar o smartphone como um modem de internet sem fio) seja bloqueado. Esta prática vai contra a neutralidade, pois a empresa acaba determinando como cliente pode (ou não) usar sua própria conexão.
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