Topo

Organizações analisam denúncias de conteúdo online; veja como funciona

Analista trabalha no Centro para Crianças Desaparecidas e Abusadas dos Estados Unidos - Divulgação
Analista trabalha no Centro para Crianças Desaparecidas e Abusadas dos Estados Unidos Imagem: Divulgação

Carlos Oliveira

Do UOL, em São Paulo

14/01/2014 06h00

A facilidade em compartilhar conteúdo que fere os direitos humanos na internet motivou a criação em todo o mundo de organizações especializadas na vigilância deste tipo de material. Elas trabalham em conjunto com as autoridades locais: recebem e filtram os materiais, ajudando a polícia a identificar vítimas e agressores. Para executar bem a função, esses profissionais precisam ter boa concentração e muita atenção aos detalhes – são eles que podem levar à identificação de um criminoso.

O UOL Tecnologia conversou com oito profissionais de seis países para entender o trabalho do analista - o profissional que se dedica a verificar conteúdo ofensivo que circula na internet. O material pode oscilar entre links que remetem a um texto xenófobo, fotos com referências racistas e vídeos que retratam cenas de abuso infantil - o tipo de conteúdo mais presente nas denúncias, segundo os analistas.

O português Gustavo Neves, 40, destrincha: “90% das denúncias que chegam a nós são sobre pornografia infantil”. Ele é consultor de segurança da FCCN (Fundação para a Computação Científica Nacional), órgão de Portugal que mantém uma hotline, espécie de disque-denúncia digital.

No Brasil, as denúncias de conteúdo impróprio podem ser feitas à Safernet. Deve-se escolher o tipo de crime, incluir o endereço da página e, opcionalmente, incluir um comentário. O site gera um código que pode ser usado para acompanhar a denúncia.

O que faz um analista

O analista avalia denúncias que a hotline recebe de autoridades ou do público, conferindo se o conteúdo pode ferir alguma lei do país.

O processo de análise varia entre cada hotline. Thiago Tavares, diretor da Safernet, exemplifica: “A gente não vai assistir a um vídeo inteiro. Às vezes um frame já indica materialidade. A polícia é que vai ver o vídeo inteiro, ouvi-lo inteiro, analisar todas as provas em detalhes”.

Nicolas D’Arcy, da francesa Point de Contact, diz que em seu país os analistas repassam à polícia “qualquer coisa que possa ser útil em uma investigação”. Como exemplo, ela cita algo característico na imagem, como uma indicação geográfica no fundo ou uma marca. “Também pode ser a informação que nos foi dada por quem denunciou”, acrescenta.

Se o conteúdo estiver hospedado no próprio país, a hotline pode pedir às autoridades que retirem o site do ar, fornecendo dados como o IP (protocolo de internet utilizado para identificar um computador conectado à rede) e o endereço da página na internet. Caso ela esteja alojada em outro território, o que é bastante comum, o analista pode recorrer a entidades globais, como a Associação Internacional de Hotlines da Internet (Inhope, na sigla em inglês), que apoia mais de 40 hotlines em diversos países, incluindo a brasileira Safernet.

Os analistas concordam que a demanda não é constante e que o número de denúncias depende muito do mês. Mas a portuguesa Filipa Macieira, da FCCN, ressalta que alguns fatores podem causar picos de alertas: “Se algum programa de televisão menciona o assunto, aumenta o número de denúncias“, exemplifica.

Os analistas também respondem por outras atividades, como comunicação com o público e com as autoridades.

Perfil

Entre as características desejáveis a um bom analista estão a concentração, a boa memória e a atenção aos detalhes, conta Shelley Allwang, da Ncmec (Centro para Crianças Desaparecidas e Abusadas dos Estados Unidos, na sigla em inglês). Também é valorizada a capacidade em estabelecer conexões, achar padrões e identificar séries (grupos de imagens ou vídeos de vítimas específicas).

“De muitas formas, a seleção começa no primeiro dia. Durante o processo, nos certificamos de que os candidatos sabem exatamente o que vão fazer na função”, diz John Shehan, diretor-executivo da Ncmec.

No caso da Ncmec, são três etapas de triagem, sendo que os candidatos só têm acesso ao material sensível na última, após serem entrevistados por alguém da direção. O treinamento dura entre seis e nove meses. Já a Safernet faz checagem de antecedentes criminais e, entre as etapas da contratação, está uma conversa com psicólogos.

Todos os analistas entrevistados concordam que trabalhar com o tema é recompensador e desafiador. “É uma sensação incrível que o nosso trabalho nos dá. Ele ajuda a garantir que um criminoso será preso”, relata Shelley.

Presença de menores em imagens e vídeos de abuso, por idade

 20112012
Crianças6%9%
Pré-adolescentes71%76%
Adolescentes23%15%
  • Fonte: Inhope, com base na análise de 29.908 vídeos e imagens em 2011 e de 37.404 em 2012

Vítimas

Há uma tendência “confirmada e crescente” da presença de crianças pequenas em imagens e vídeos de abuso infantil, afirma Sarah Jane Mellor, gerente de comunicação da Inhope (veja tabelas ao lado).

Ainda assim, profissionais relatam que há uma dificuldade em se ter certeza de que, na tela, está um menor de idade.

Filipa, há seis anos na função, diz que há imagens que "suscitam muitas dúvidas", mas que já olha para os corpos buscando detalhes que podem delimitar a faixa etária. Ela cita tatuagens e piercings como possíveis indicativos de que a pessoa é maior de idade.

Há também muitos sites que usam mulheres infantilizadas, simulando modelos menores de idade. Nesses casos, a localização do material pode ajudar: “Se no site inteiro de pornografia adulta há uma imagem que suscita dúvida, é quase certeza que não se trata de pornografia infantil”, explica Filipa.

No entanto, essa dedução pode jogar contra os especialistas. “Os sites estão protegidos legalmente, porque na prática não fazem nada de ilegal ao utilizarem maiores de idade. Eles podem usar isso a seu favor, na tentativa de atender à demanda por conteúdo com crianças”, explicou Gustavo Neves.

Ligação emocional

Por conta do tipo de conteúdo, os especialistas admitem ser difícil não manter uma ligação emocional com as vítimas.

“O material é muito forte. Esse tipo de carreira não é uma para qualquer um”, diz John, da norte-americana Ncmec. O brasileiro Thiago concorda: “É difícil. A gente procura não se fixar no conteúdo e no material”.

“No setor em que atuamos, nunca nos encontramos com as vítimas que foram identificadas. Todos [polícia, Justiça etc] atuam em setores diferentes”, conta Shelley.

Todas as hotlines contatadas oferecem sessões periódicas com psicólogos - podem começar como obrigatórias a cada semana e, conforme o funcionário fica mais experiente, elas se tornam mais espaçadas.

Gêneros presentes em imagens e vídeos

Feminino75%
Masculino13%
Ambos12%
  • Fonte: Inhope, com base na análise de 37.404 vídeos e imagens em 2012

Jeremy Fenton, 43, gerente da equipe de analistas da ACMA (Autoridade Australiana de Comunicações e Mídia, na sigla em inglês), cita alguns recursos para tornar o trabalho mais tolerável. “Técnicas como minimizar o tamanho das imagens e diminuir o som dos vídeos podem ajudar. Alguns membros da equipe também preferem pensar nas imagens como ‘pixels’ em vez de pessoas - isso permite a eles algum distanciamento para fazer uma tarefa difícil.”

Na ACMA, os analistas não ficam mais de quatro horas por dia avaliando material e usam o tempo restante para outras atividades.

Filipa diz que sua formação no curso de Serviço Social a expôs a dramas humanos que de certa forma a fortaleceram. Mas não romantiza a profissão: “É o sentimento de que o trabalho precisa ser feito e que alguém precisa fazê-lo”.