Análise: WhatsApp é ameaça à democracia, mas resposta não pode ser censura
O papel do WhatsApp como ferramenta de dispersão de mentiras em massa se tornou um dos principais tópicos destas eleições. Mas, se por um lado, o processo democrático fica ameaçado por disseminar mensagens falsas de maneira privada, por outro, intervir na plataforma traz um risco a direitos que cidadãos têm em uma democracia, como o da liberdade de expressão e o da privacidade.
O TSE (Tribunal Superior Eleitoral) foi claro ao dizer que as medidas tomadas para inibir as fake news não podem servir de censura. Então, o que fazer?
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"Plataformas como o WhatsApp são tecnologias de duplo uso, que podem ser usadas de formas que podem tanto promover quanto enfraquecer valores democráticos. Por exemplo, o WhatsApp promove valores democráticos por criar uma zona de privacidade onde a opinião e as crenças de indivíduos podem ser protegidas", explicou Barrie Sander, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas e responsável por lecionar um curso intitulado "Ameaças Digitais à Democracia".
"Ao mesmo tempo, o WhatsApp pode ser utilizado para disseminar desinformação dentro de comunidades específicas, de uma forma que desencoraja os leitores de irem às urnas, exacerba divisões partidárias e promove desconfiança dentro da sociedade", completou.
A mensagem central é que precisamos ter certeza que, se a desinformação é um problema tão grande quanto Estados acreditam que ela é, é importante que não tornemos a resposta à desinformação pior, com regulações repressivas, que encorajem censura, que minem a privacidade e a liberdade de expressão online" Barrie Sander
Sander considera que o WhatsApp tem o desafio de reduzir a capacidade de sua própria plataforma de espalhar boatos, sem abrir mão de seu principal trunfo, que é a privacidade do conteúdo das conversas em grupo ou particular, protegidas pela criptografia de ponta a ponta. Sugestões já foram feitas à plataforma pelo Conselho Consultivo do TSE, mas o WhatsApp respondeu que não "tem planos" de mudar suas regras - ao menos em tempo para o segundo turno das eleições brasileiras.
Duas das mudanças que a empresa foi aconselhada a adotar no Brasil são restrições que estão em prática na Índia, onde pessoas morreram em decorrência de boatos propagados dentro do WhatsApp. Lá foram aplicadas maiores limitações para propagar conteúdos de forma maciça, diminuindo encaminhamentos de mensagens (ou vídeos, áudios) a cinco contatos ou grupos (no resto do mundo são 20) e retirando o botão de encaminhamento ao lado de mensagens de áudio e vídeo.
É uma inconveniência para quem quer espalhar o mesmo conteúdo a dezenas de pessoas, mas não uma violação à liberdade de se expressão, muito menos à privacidade. Ainda assim, só a redução de 200 encaminhamentos a 20 gerou reclamações, por exemplo, do presidenciável Jair Bolsonaro (PSL), que disse que irá lutar para que a limitação seja desfeita - desejo de difícil sustentação jurídica.
Intervenção pode ser danosa
Eventuais intervenções da Justiça ou do governo na responsabilização da plataforma pelas fake news podem ter o efeito reverso aos conselhos encaminhados pelo TSE ao WhatsApp.
"Se tivermos leis que encorajem plataformas a censurar conteúdo online, por medo de responsabilidade, isso pode levar, potencialmente, a um excesso de censura, minando o direito à liberdade de expressão", analisou Sander.
"Quando olhamos essa questão, temos que enxergar os potenciais problemas de dois pontos de vista, não apenas que a desinformação pode ter um impacto negativo no debate democrático, mas também que algumas políticas de resposta também podem ter um impacto negativo na democracia."
Conteúdo privado?
Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, trouxe uma perspectiva diferente sobre a ideia de responsabilizar a plataforma. Isso porque, ao contrário de Facebook ou YouTube, o WhatsApp nem tem conhecimento do conteúdo trocado entre seus usuários, pois as conversas são criptografadas.
"Ele se parece muito mais a tecnologia do SMS que com Facebook ou YouTube. Aí está uma das chaves para entender o problema, além de que a empresa não consegue tecnologicamente ter acesso aos conteúdos veiculados", explicou.
"O WhatsApp é diferente por não ter uma 'linha do tempo' que simula uma praça por onde passam seus amigos", disse Rafael Zanatta, advogado do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). "Ele parece mais os grupos do Orkut, onde era preciso pedir para entrar. Há essa ideia de um grupo fechado de discussão."
Isso dificulta como deve ser a abordagem com relação ao WhatsApp. A empresa diz usar "tecnologias de ponta" que identificam spam e contas que tenham um com comportamento anormal ou automatizado, mesmo sem ter acesso ao conteúdo. Segundo o WhatsApp, centenas de milhares de contas foram banidas no período eleitoral brasileiro.
Atrapalhar esse tipo de comportamento parece ser o melhor caminho, embora a empresa não vá implementar as mudanças do TSE em um futuro próximo. Por outro lado, um simples bloqueio do serviço atrapalharia, por exemplo, a comunicação entre familiares e amigos, além de negócios que são feitos com o uso do aplicativo de mensagens.
A Justiça já atuou derrubando o WhatsApp, mas casos recentes mostram indivíduos responsabilizados por acontecimentos na plataforma, inclusive pelo ocorrido em grupos.
"A jurisprudência tem se construído com enfoque na responsabilização civil e criminal das condutas dos indivíduos nesses grupos. Seja pela publicação de conteúdo danoso como pela omissão em impedir uma situação de dano. Há julgados que responsabilizam o administrador do grupo por 'não fazer nada' diante de uma situação criminal: um bullying constante ou repetidas ações de calúnia", afirmou Zanatta.
O advogado do Idec enxerga a dificuldade de uma regulação do WhatsApp, mas acredita no surgimento de projetos de lei que tentem enquadrar a plataforma como uma "aplicação de mensagens privadas" para determinar condições regulatórias posteriormente, como a obrigação da criação de um cargo específico, que sirva como um ponto de contato da empresa no Brasil para "notícias falsas". Ele ainda aponta para uma regulação de um mercado profissionalizado que usa o WhatsApp como instrumento.
"Nesse caso, o direito não olha para o WhatsApp em si, mas para as condições de registro e operação dessas empresas de 'estratégia digital", afirmou.
"Penso que estamos em uma transição maior. Não estamos mais trabalhando com a responsabilização 'ex post', de quem fará a compensação após o dano. Me parece que há uma tendência de regulação "ex ante", com enfoque no design e no uso de instrumentos centrados em documentação e criação de cargos de diálogo com o poder público", concluiu.
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