Impressora 3D e drones: Por que armas feitas em casa preocupam os EUA
No mesmo dia em que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) assinava um decreto que flexibiliza a posse de armas no Brasil, ocorria nos Estados Unidos um debate que resvala nesse assunto, mas ia além. Por lá, o que está em jogo é se o cidadão pode fabricar as próprias pistolas ou revólveres em casa e se é crime disponibilizar instruções na internet de como confeccioná-las com uma impressora 3D. Ainda há o temor de drones sejam equipados com armas de fogo.
No Brasil, Bolsonaro mudou nesta terça-feira (15), entre outras coisas, os critérios para um interessado em ter em casa uma arma justificar essa necessidade. Já no estado norte-americano de Nova Jersey, um grupo de ativistas contestava uma lei estadual que transformou em crime qualquer oferta de projeto digital para fabricar as "armas fantasmas" feitas em casa.
O debate virou uma disputa judicial com repercussão nacional, que envolveu a Casa Branca, e se arrasta desde o ano passado. Tudo isso por que ele mexe com a liberdade individual, princípio caro aos norte-americanos. A história é permeada ainda com acusações de estupro e perseguição internacional.
'Arma fantasma'
Como a posse ou o porte de arma são permitidos, desde que com registro, em boa parte dos estados, essa não é uma discussão quente por lá. O que está jogo é algo que deixou autoridades de cabelo em pé: a possibilidade de criar em caso a própria arma de fogo. Como? Com uma impressora 3D.
Tem ocorrido um vívido debate nos EUA sobre o direito de produzir e possuir armas de fogo feitas com impressora 3D.
Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, especializado em segurança pública
Segundo o cientista político, as armas 3D ainda são um risco menor, mas com bastante potencial. Como a maioria de suas partes é feita de plástico, elas podem passar despercebidas por equipamentos de detecção, como raio-x de aeroportos. Por terem essa característica, ganharam o nome de "armas fantasmas". Muggah conta que só isso já as faz ilegais nos EUA, pois a lei proíbe qualquer armamento que não pode ser detectado.
O problema, porém, não é só esse. Por poderem ser feitas na garagem da casa de qualquer pessoa, pistolas e rifles 3D podem cair nas mãos de pessoas impedidas pela legislação de andarem armadas e não contam com qualquer forma de rastreabilidade, como números de série.
Há uma crescente preocupação entre os legisladores dos EUA de que as armas feitas com impressora 3D irão eventualmente se tornar um risco real. Agentes da lei temem que a disseminação das 'armas fantasmas', que não possuem qualquer número de série, possa driblar detectores de metal ou serem adquiridas por infratores ou doentes mentais.
Por trás desse novo temor, estão máquinas que fabricam objetos em três dimensões, sejam partes de foguetes espaciais ou paredes de casas. Da mesma forma que impressoras depositam tintas em folhas de papel para confeccionar documentos, as impressoras 3D usam plástico ou metal para ir construindo de camada em camada algum produto tridimensional. Elas dependem, no entanto, de um projeto gráfico com as instruções do que fazer.
Em New Jersey, o receio diante do avanço das armas 3D fez legisladores criminalizam a simples disponibilização na internet de um molde para criar armamento com impressoras. A legislação tem o potencial de afetar qualquer site do mundo, já que seu alcance se limita a serviços cujos servidores estão no estado. Basta um desses projetos de design poder ser baixado por um cidadão de NJ.
A lei diz que é crime "fabricar ou facilitar a confecção de uma arma de fogo usando uma impressora 3D". Estão enquadradas "pessoas que distribuem por quaisquer meios, inclusive a internet, a uma pessoa de New Jersey (...) instruções digitais na forma de arquivos de design ou outros códigos ou instruções armazenadas e exibidas em formato eletrônico como modelo digital que pode ser usado para programar uma impressora 3D para produzir uma arma de fogo, receptor de arma de fogo, revista ou componente de arma de fogo".
Outro estado que está prestes a ganhar uma legislação nessa linha é Washington.
Lacunas nas leis existentes permitem que indivíduos perigosos, que seriam reprovados em uma checagem de antecedentes, possam construir armas de fogo não-rastreáveis ao conseguir online esses kits faça-você-mesmo ou baixando arquivos para imprimir armas em impressoras 3D
David Pucino, do Centro para Prevenir Violência com Armas
E no Brasil?
Muggah, do Instituto Igarapé, lembra que a preocupação não é apenas dos EUA: armas 3D já são banidas na Austrália e no Reino Unido.
Ele lembra que, no Brasil, a legislação também proíbe a produção de armas sem uma licença adequada. O crime é punido com cadeia de 4 a 8 anos mais multa. A posse ou o porte sem a devida autorização de uma arma, inclusive as feitas com impressora 3D, renderia até 4 anos de prisão.
Outro impeditivo para a disseminação das armas 3D por aqui, diz ele, é que alguns entraves como a tecnologia rudimentar e o preço pesariam bem mais. Não raro, pode ocorrer de a arma feita de plástico explodir na mão do atirador.
Os custos das máquinas de impressão 3D para produzir armas de fogo de qualidade são exorbitantes. Impressoras pequenas não estão à altura da tarefa: o modelo necessário custa bem mais de US$ 100 mil. Grupos criminosos são muito mais hábeis em fabricar suas armas caseiras por muito menos
Ainda assim, o apetite por armas de alto calibre poderia gerar um mercado instantâneo.
Fuzis de assalto automáticos e semiautomáticos têm alta demanda e podem custar entre US$ 10 mil e US$ 20 mil, dependendo de marca e calibre. Se rifles de alta potência fossem feitos a baixo custo, poderia haver um mercado pronto. Mas ainda estamos longe
Arma 'faça-você-mesmo'
A lei de Nova Jersey entrou em vigor no fim do ano passado, na esteira de um debate que sacudiu os EUA sobre a proibição da distribuição de moldes de armas 3D. Protagonista desse movimento, a Defense Distributed (DD, sigla para "Defesa Distribuída", em tradução livre) se sentiu particularmente atacada pela legislação e, por isso, tenta derrubá-la.
Nesta terça-feira (15), enquanto Bolsonaro reunia parlamentares da "bancada da bala" para assinar o decreto que afrouxa a exigência para obter porte de arma no Brasil, a DD participava de uma audiência que é parte de um processo que move na Justiça contra New Jersey.
Tudo começou em 2012, quando o maior repositório de moldes 3D do mundo resolver remover todos os projetos que ajudavam a confeccionar armas. Um dos defensores das armas 3D era Cody Wilson, que ajudou a criar a Defense Distributed, organização voltada a desenvolver e distribuir códigos abertos com essas instruções para impressoras 3D fabricarem armas. Para ele, possuir uma arma de fogo é um direito constitucional de todo norte-americano.
Tão logo a DD começou a liberar os moldes, o governo federal norte-americano entrou em cena. O Departamento de Estados dos EUA exigiu em 2013 que a entidade removesse os moldes da internet, pois eles poderiam infringir a Regulação Internacional de Tráfico de Armas - os arquivos oferecidos pelo site da DD, hospedado na Nova Zelândia, já haviam sido baixados mais de 100 mil vezes.
A DD não se deu por vencida e em 2015 ingressou na Fundação Segunda Emenda, organização que apoia o direito a ser armar, e processou o governo dos EUA.
A DD não obteve sucesso e amargou derrota atrás de derrota na tentativa de reverter a proibição - a Suprema Corte até se negou a receber uma apelação. Até que, em junho de 2018, o Departamento de Justiça, já sob a gestão Donald Trump, agiu não só de forma controversa como inesperada em relação ao caso. Primeiro, classificou a iniciativa de distribuir instruções para fazer armas 3D como uma ameaça à segurança nacional; depois, fechou um acordo com a Defense Distributed e a liberou a distribuição dos moldes.
Diversas promotorias estaduais foram à Justiça para barrar a oferta, e um tribunal federal norte-americano bloqueou a liberação gratuita em agosto. A solução? A DD começou a vender os moldes.
E não só isso. A organização também passou a vender as impressoras 3D necessárias para fabricar armas ainda mais realistas. Uma dessas máquinas sai por US$ 2.000. Devido à lei de NJ e aos anteriores, a entidade não vende para quem morar no estado nem para pessoas de fora dos EUA.
Para adicionar tons cinematográficos à trajetória da DD, Wilson se afastou da direção após ser acusado de estuprar uma menor no Texas. Isso rendeu uma perseguição internacional que contou com a colaboração da Interpol, já que ele fugiu para Taiwan assim que foi indiciado.
Perigo aéreo
No mesmo ano em que a Casa Branca vetava os moldes para armas feitas com impressora 3D na internet, a invenção de um garoto assustou meio mundo.
Austin Haughwout, à época com 16 anos, acoplou a um drone uma pistola automática. Ainda que disparasse contra objetos inanimados, como latinhas de refrigerante, a "arma voadora" gerou temor. Tanto que a Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos (FAA, na sigla em inglês) afirmou que a prática é ilegal. Tempos depois, ele ainda criou um drone munido com um lança-chamas.
Curiosamente, Haugwout foi condenado a sete anos de cadeia no mesmo dia em que Bolsonaro assinou o decreto sobre porte de armas no Brasil - a condenação não foi aplicada em decorrência das "armas voadoras", porém, e, sim, porque ele agrediu um policial.
Ainda que parecesse brincadeira de criança, a ideia foi usada por uma empresa norte-americana. A Duke Robotics criou o drone TIKAD, equipado com metralhadora ou lançador de granada, e o vendeu aos militares israelenses. Também ofereceu ao Pentágono, mas não há notícia sobre se o Exército dos EUA fechou negócio.
Tanto no caso do drone feito por Haughwout quanto pela Duke Robotics, o gatilho não é automaticamente e, sim, acionado por um humano. A associação entre armas e veículos aéreos preocupou.
Mesmo que não seja totalmente autônomo, ainda assim é preocupante
Mary Wareham, diretora da Human Rights Watch
Os drones com armas embutidas assustam por serem mais ágeis do que os veículos aéreos não tripulados usados atualmente para fins militares.
Grandes drones militares tradicionalmente têm de voar a milhares de pés de distância para atingir seus alvos, mas esses drones menores podem facilmente voar por ruas e aplicar violência
Noel Sharkery, professor da Universidade de Sheffield, à BBC
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