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A culpa do terraplanismo é do YouTube? É o que dizem os próprios seguidores

Conceito de uma Terra plana com o Polo Norte no centro e a Antártida nas periferias é defendido por alguns - Reprodução
Conceito de uma Terra plana com o Polo Norte no centro e a Antártida nas periferias é defendido por alguns Imagem: Reprodução

Márcio Padrão

Do UOL, em São Paulo

19/02/2019 04h00Atualizada em 20/02/2019 09h57

Resumo da notícia

  • Em pesquisa, seguidores do terraplanismo admitem ter sofrido influência de vídeos do YouTube
  • Na era da pós-verdade, fatos científicos antes inquestionáveis passaram a ganhar desconfiança
  • YouTube já vem demonstrando incômodo com a tendência e tomou medidas
  • Apesar de perderem alcance, os vídeos continuarão disponíveis na plataforma

As redes sociais estão há anos sofrendo com o problema da desinformação. Há quem diga que a ascensão do terraplanismo, corrente pseudocientífica que defende que o planeta é plano e não esférico, teve muita ajuda da internet. Agora, saíram resultados de uma pesquisa mostrando que os próprios seguidores da ideia admitem isso.

A Universidade de Tecnologia do Texas fez entrevistas com participantes das maiores reuniões de terraplanistas do mundo: na conferência anual do movimento em Raleigh, Carolina do Norte (EUA), em 2017, e depois em Denver, Colorado, no ano passado. De todas as 30 pessoas ouvidas, 29 disseram que há dois anos atrás não consideravam a Terra plana, mas mudaram de ideia após assistir vídeos das teorias dessa corrente no YouTube.

O Google afirma que a plataforma de vídeo é aberta e que está trabalhando para diminuir o alcance de conteúdos que disseminem a desinformação ou teorias mirabolantes.

O YouTube é uma plataforma que apoia a liberdade de expressão, na qual qualquer pessoa pode postar vídeos, desde que eles sigam nossas diretrizes da comunidade. Começamos a reduzir recomendações de conteúdo limitado e vídeos que poderiam desinformar, e introduzimos painéis informativos para fornecer aos usuários mais fontes, onde eles podem verificar informações por si mesmos.

No ano passado, vimos a maior prova do poder de influência das redes sociais: o escândalo do uso de dados pessoais de 87 milhões de usuários do Facebook para campanhas políticas, como as eleições americanas de 2016, vencidas por Donald Trump. Mesmo antes disso, em 2017, Google, Facebook e Twitter tiveram que dar explicações sobre a suposta manobra russa para influenciar as eleições de 2016. E as explicações continuaram em 2018.

A manipulação das plataformas pode ir desde a compra de anúncios com público direcionado até a criação de perfis falsos em massa. Em comum, a tática é difamar o inimigo, principalmente com boatos e mentiras.

Foi o que aconteceu com Hillary Clinton, rival de Donald Trump nas eleições de 2016, que foi acusada de se envolver em pornografia infantil no escândalo conspiratório "Pizzagate". No Brasil, o Facebook desativou no ano passado uma rede de páginas e contas falsas criadas para gerar desinformação nas eleições, e uma reportagem da "Folha de S. Paulo" mostrou empresas comprando pacotes de disparos em massa de mensagens contra o PT no aplicativo WhatsApp e preparavam uma grande operação na semana anterior ao segundo turno.

Pós-verdade

Mas o que tudo isso tem a ver com o terraplanismo no YouTube? Bem, esse ambiente digital novo que surgiu nos últimos anos, em que as informações de ambos os lados do espectro político são colocadas sob suspeita, acabara refletindo negativamente para outros campos, como o científico. Na era da pós-verdade, a informação jornalística está sob escrutínio e fatos científicos, antes consolidados, passaram a ganhar desconfiança.

Foi o que aconteceu com a ideia de que a terra tem formato esférico, aceita como verdade pelo menos desde o século 17, após o trabalho de cientistas pioneiros como Copérnico, Galileu, Kepler e Newton, e comprovada na prática por imagens da exploração espacial. Os terraplanistas baseiam seus argumentos em escritos religiosos, como a Bíblia, ou em filmes como "Matrix" para apontar uma conspiração governamental e das agências espaciais. Acusam entidades como a Nasa de usar sua influência para esconder a "verdade" e controlar o entendimento das pessoas sobre a Terra plana.

O que o YouTube fez?

Por que vídeos da teoria da conspiração ganharam muita fama no YouTube? Guillaume Chaslot, especialista em inteligência artificial, disse recentemente em um tópico no Twitter que esses vídeos tendem a ser promovidos pela IA do YouTube mais do que vídeos baseados em fatos, porque essas plataformas são influenciadas por pequenos grupos de usuários ativos.

Chaslot usa como exemplo o sogro de seu melhor amigo, que caiu em depressão após a morte do pai e depois disso passou a cair no "buraco de coelho" das teorias da terra plana, aliens e afins. Esse sujeito passa bastante tempo vendo esses vídeos e do ponto de vista da IA do YouTube, ele é um "grande prêmio", diz Chaslot. "A IA considera Brian como um modelo que 'deve ser reproduzido'. Ele toma nota de cada vídeo que assiste e usa esse sinal para recomendá-lo a mais pessoas".

Apesar de manter algum verniz de imparcialidade, o YouTube já vem demonstrando alguns sinais de incômodo com os adeptos da Terra em forma de panqueca. Em março do ano passado, começou a exibir textos de artigos da Wikipedia e outros sites ao lado de alguns vídeos para combater fraudes e teorias de conspiração no serviço.

Em janeiro deste ano, a empresa foi mais incisiva. Em um post no seu blog oficial, disse que começaria a reduzir as recomendações de conteúdos incertos ou que possam desinformar os usuários de maneiras prejudiciais. E entre os exemplos estavam curas milagrosas falsas, afirmações falsas sobre eventos históricos como o 11/9 e... que a Terra é plana.

"Essa será uma mudança gradual e inicialmente afetará apenas as recomendações de um conjunto muito pequeno de vídeos nos Estados Unidos. Com o tempo, à medida que nossos sistemas se tornarem mais precisos, lançaremos essa alteração em mais países", disse a empresa na época.

Apesar de morder, também assoprou: disse que a mudança afetaria "menos de 1% do conteúdo do YouTube", além de esclarecer que apenas as recomendações de quais vídeos assistir perderiam alcance. Mas os vídeos continuariam disponíveis no YouTube. "Achamos que essa mudança estabelece um equilíbrio entre manter uma plataforma de liberdade de expressão e cumprir nossa responsabilidade com os usuários".

No sábado (16), o Google apresentou um documento na Conferência da Segurança de Munique que diz como avalia a teoria da Terra plana. "Por exemplo, o conteúdo que afirma que a Terra é plana (...) pode não necessariamente violar nossas diretrizes da comunidade, mas não queremos recomendá-la proativamente aos usuários".

Mas o problema vai acabar?

Especialistas alertam que as mudanças de plataforma como essas podem na verdade ter o efeito reverso: alimentar mais teorias falsas, com os seguidores afirmando que a "censura" é mais uma prova da "conspiração". "Isso vai atrair a ira dos teóricos da conspiração, certamente", disse Joseph Uscinski, professor de ciência política da Universidade de Miami e especialista em teoria da conspiração ao jornal "The Guardian".

"Acreditar que a Terra é plana em si não é necessariamente prejudicial, mas vem embalada com uma desconfiança nas instituições e na autoridade em geral", acrescentou Asheley Landrum, da Universidade de Tecnologia do Texas, que fez as entrevistas nas convenções de terraplanistas.

Landrum acredita que o melhor antídoto para enfrentar o tema é a informação correta. "Não queremos que o YouTube esteja repleto de vídeos dizendo que aqui estão todas essas razões para que a Terra seja plana. Precisamos de outros vídeos dizendo que é por isso que esses motivos não são reais e aqui estão algumas maneiras de pesquisar por si mesmo".