Lego de DNA, chips e sensores: o que pretendem quem brinca com a biologia
Pedacinhos de DNA montados como peças de Lego dentro de um microorganismo para dotá-lo de uma nova função. Pode parecer uma descrição simplista de engenharia genética, mas essa abordagem descomplicada ajuda a entender como pessoas de formações distintas têm criado laboratórios improvisados para praticar ciência fora do ambiente acadêmico. São os biohackers, que praticam uma biologia 'faça você mesmo'.
Mas o que fazem os praticantes do biohacking? Aí é relativo: tem quem desafie os limites do corpo humano com implantes de chips e sensores, assim como interessados em desenvolver materiais e solucionar problemas. Também tem quem procure novas formas de fazer arte e ainda aqueles que dão um jeito de construir com pouco dinheiro a infraestrutura necessária para tudo isso ser possível.
Há um caráter transgressor no movimento - o hacking do nome vem da ideia de compreender determinado sistema e subverter a maneira como ele é utilizado. Não há fronteiras e os interesses dessa galera se dividem entre essas e outras atividades. Em comum, todos que estão no meio defendem um acesso mais livre a ciência e ao conhecimento.
"Quem está fazendo biohacking é gente que está fugindo dos propósitos acadêmicos. Gente que quer pensar coisas que na academia não fazem sentido", diz Vitor Barão, que completa:
Tipo arte. Ninguém na academia consegue manipular organismos vivos pensando em finalidades artísticas, ou com finalidades de questionamento político.
Biólogo de formação, Vitor precisou utilizar essa adaptabilidade para concluir um mestrado em botânica quando se deparou com um orçamento dez vezes menor do que esperava. Pediu para um amigo programador simular uma versão de um software caríssimo que ele precisava.
Da mesma forma, entrou em contato com uma empresa que tinha um sistema de inteligência artificial para análise de comportamento de pessoas em aeroportos e conseguiu fazer adaptações para utilizá-lo no reconhecimento de folhas de plantas.
"Fui percebendo que que esses olhares me interessavam mais que a rigidez acadêmica", diz ele.
Nem sempre é preciso improvisar tanto. Grande parte da cultura biohacker é baseada no acesso a projetos open source, ou seja, que qualquer um pode utilizar. "Por mais básicos que sejam, os instrumentos de laboratório são absurdamente caros, mas praticamente tudo você conseguir construir com ferramentas de fabricação digital", explica Eduardo Padilha, que coordenou a primeira edição da BioHack Academy no Brasil, em 2015. O curso é organizado pela Waag Society, da Holanda, uma referência na área.
Além da possibilidade de construir os equipamentos, também há empresas que vendem kits por preços acessíveis, como mini centrífugas movidas a motor de drive de CD. O acesso aos insumos biológicos, como reagentes e organismos utilizados nos experimentos, varia: determinadas bactérias e fungos podem ser cultivados, mas grande parte do material precisa ser comprado.
Assim como Vitor, Eduardo também vem de uma experiência tradicional em laboratórios. Mas ele começou bem mais cedo. Aos 13 anos, passou a frequentar o Laboratório de Reparo de DNA da USP. "Eu morria de vontade de ver a rotina e estou lá até hoje", diz. Em paralelo a carreira formal de cientista, no entanto, procurou outros espaços onde fosse possível experimentar com mais liberdade.
Liberdade fora da academia
"Ter contato com outra visão, de grupos fora da academia, em workshops, eventos onde a gente põe a mão na massa, faz as coisas, mantém a liberdade criativa e permite a apropriação de conhecimentos e ferramentas", fala.
Você não precisa de alguém que tenha um doutorado para pensar a solução de um problema a partir de conceitos da biologia ou ciências naturais.
Não há um marco específico para o começo do biohacking como movimento. Mas a criação do Genspace, um laboratório comunitário no Brooklyn, em Nova York, sem dúvida é um momento importante. Espaços semelhantes ao redor do mundo são a base para o trabalho de manipulação de microorganismos, um dos campos mais prolíficos dessa área.
No Brasil, iniciativas semelhantes ainda são raras. Há alguns biohacking labs dentro de makerspaces, espaços comunitários também baseados na cultura 'faça você mesmo', mas com ênfase em eletrônica e prototipagem. Outros estão ligados a instituições de ensino, como o Idea Real Bio Lab, em Belo Horizonte.
Aberto em 2018, o Idea Real faz parte do Instituto de Ciências Biológicas da UFMG e foi gestado em 2013, quando a professora Liza Felicori levou um grupo de estudantes da graduação e pós-graduação para uma competição chamada iGEM. "A nossa proposta era criar bactérias geneticamente modificadas para detectar doenças cardíacas de maneira precoce", explica Liza.
"Esses alunos, essas pessoas, tinham ideias para projetos mas não tinham espaços, sempre precisavam se vincular a um professor específico, não tinham autonomia e liberdade para trabalhar", fala a professora. No laboratório, além de aproximar a ciência da população em geral, com oficinas de extração de DNAs de frutas com materiais caseiro, por exemplo, há a possibilidade de inscrever um projeto e ter acesso a infraestrutura disponível.
"Não precisa ter um conhecimento muito grande. E nesses espaços você tem uma ideia e começa a chamar a comunidade. Fala que quer despoluir o Lago Pampulha e para isso chama um biólogo, um engenheiro, chama entusiastas que querem resolver um problema e vão propor soluções, sejam elas sociais, tecnológicos ou científicas", afirma Liza.
Biologia sintética
A competição de onde surgiu o Idea Real, o iGEM, é voltada para a biologia sintética. Em resumo, a ideia é pegar um microrganismo, como uma bactéria, e transformá-lo numa máquina biológica. Por meio da adição de pequenos compostos de DNA, esse microrganismo passa a ser capaz de receber uma informação, processá-la e então oferecer um resultado.
É a história do Lego no começo do texto --uma metáfora utilizada por Lina Lopes, que se aproximou da biologia sintética justamente em um curso oferecido pela equipe do iGEM coordenada pela professora Liza Felicori. Na época, o objetivo era desenvolver uma bactéria capaz de detectar traços de arsênio na água. Se isso ocorresse, a bactéria produziria uma proteína azul.
Mas, assim como quase todo mundo no meio, Lina não ataca em uma frente só. Formada em roteiro e autodeclarada uma artista que trabalha com tecnologia, ela é sócio do makerspace LILO.Zone e tem lá dentro um pequeno laboratório chamado BioLiloLab. Neste espaço, Lina alimenta uma colônia de fungos com óxido de grafeno, capaz de conduzir corrente elétrica.
"Eu quero criar um material biológico, biodegradável e condutor", diz. Esse biomaterial poderia ser utilizado, por exemplo, na confecção de adesivos capazes de fazer exames biométricos e que em seguida poderiam ser lavados do corpo.
Corpo elétrico
A faceta mais chamativa do biohacking é a modificação corporal - conhecida como grinder. Há casos extremos, como o do inglês Neil Harbisson. Por conta de uma doença chamada acromatopsia, Neil não consegue ver cores, então desenvolveu uma espécie de anteninha chamada 'eyeborg' que detecta cores e as transforma em sons para ele.
Outros exemplos incluem sensores que ajudam o dono a identificar para que lado está o norte magnético, assim como pequenos ímãs colocados embaixo das digitais que ao longo do tempo permitem identificar com o corpo a proximidade de campos magnéticos.
Lina possui dois chips NFC implantados nas mãos, que disparam informações para sensores próximos. Com um deles é capaz de tocar um instrumento musical desenvolvido por ela mesmo. "Eu vi num documentário o Tom Zé falando que queria tocar piano, mas todo mundo tocava piano superbem, então ele foi tocar enceradeira. Como nunca ninguém tocou antes, com quem iam comparar?", diz. "Eu fiz o mesmo, é meu lado de musicista frustrada", brinca ela.
O outro envia um link do portfólio dela para smartphones e outros dispositivos habilitados a receber sinais NFC. "Mas implantar chips é a pontinha do iceberg. É showbusiness, mas do ponto de vista experimental, intelectualmente falando, é a parte mais sem graça", afirma Lina.
Grande parte da graça está nos laboratórios. Ao contrário dos "makerspaces" tradicionais, que se assemelham a oficinas, em grande parte dos casos o biohacking demanda laboratórios molhados, que oferecem acesso fácil a água e maiores condições de higiene e isolamento. Em geral, esses espaços recebem apenas pesquisas de nível um de biossegurança, o mais baixo.
"No Brasil, mesmo nas universidades é raro ver um laboratório nível dois de biossegurança, que é equipado para trabalhar com vírus e bactérias mais perigosas", diz Eduardo, que também trabalha com modificação genética de microrganismos para fazer bioarte.
Se parece muito complicado é preciso esclarecer que pesquisas como essas partem de princípios de que os elementos utilizados já foram mapeados. É como descobrir uma nova forma de montar um quebra-cabeça em que as peças são conhecidas. Mas nem sempre isso é possível.
Eduardo conta que alguns anos atrás se juntou a um grupo para desenvolver uma teia de aranha sintética com capacidades antibiótica que poderia ser usada como curativo em queimaduras - tudo baseado em biologia sintética e construído em cima de uma espécie de microalga.
"Nós queríamos usar só coisas do Brasil, e fomos atrás de um gênero de aranha que é uma praga aqui, chamada Nephila. Só que ninguém no mundo sequenciou todo o DNA dela, então não sabíamos qual trecho fazia a teia. Tivemos que pegar outra aranha que alguém já tinha sequenciado e publicado, uma espécie de viúva negra", conta ele. "Se já fizeram o trabalho, você consegue brincar com o quebra-cabeças. Se ninguém nunca fez, é preciso descobrir antes de usar."
O grupo conseguiu criar um protótipo da teia, mas o projeto acabou ficando de lado. De qualquer forma, se fosse para frente precisaria passar por todo o processo de certificação de um produto tradicional, como validação científica em outras pesquisas, e registro em órgãos reguladores como a Anvisa.
Um trabalho de anos e que não interessa a todos os biohackers. "Tem muita gente fazendo coisa que não é testável, mas como experimento e proposição é super interessante", diz Vitor. "A academia perdeu a chance de ter gente testando coisa que não faz sentido. O biohacking tem utilidade nisso, de colocar em prática conceitos e ideias, que um dia podem precisar passar por validação científica, mas que tem um caminho interessante de experimentação."
MANIPULAÇÃO DE ECOSSISTEMAS
Ao invés de microrganismos, Vitor tem estudado como influenciar e manipular ecossistemas em uma escala maior. Num projeto chamado Plantrix, ele conectou uma planta dentro de uma estufa acoplada a um computador que controla as variáveis ambientais que influenciam seu desenvolvimento.
"O computador controla um monte de sensores e atuadores que influenciam 18 variáveis, como umidade, temperatura, ventilação, luz, nível de gás carbônico", explica. "Em teoria ele faz a planta se sentir em qualquer ecossistema do mundo."
A ideia surgiu de um trabalho que ele participou e hackeou, como ele descreve. Patrocinado pela indústria sucroalcooleira, o projeto usava uma metodologia semelhante para entender como a cana-de-açúcar reagiria ao aumento do gás carbônico decorrente do efeito estufa. A cana não teve problemas, mas Vitor aproveitou a infraestrutura para testar outros vegetais. Nesse caso, o cenário era diferente.
Apoiado pelo SESC, o Plantrix não tem um futuro claro. "As pessoas me perguntam se vou patentear, mas não tenho vontade. É um conhecido aberto", diz Vitor. As possibilidade são diversas: do ponto de vista prático, plantar qualquer coisa dentro de casa; do artístico, questionar o que significa plantar dentro de uma cidade; do filosófico, entender o que é um ecossistema e o que é uma realidade virtual para uma planta.
A verdade é que experimentar um sistema para criar uma planta amazônica no Centro de São Paulo pode não fazer sentido enquanto a Amazônia existe. Mas e depois?
A resposta não existe, mas está ao alcance dos biohackers.
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