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Teste de DNA caseiro condena assassino após 30 anos. Agora, qual o limite?

O exame de DNA revolucionou a resolução de crimes - Getty Images
O exame de DNA revolucionou a resolução de crimes Imagem: Getty Images

Débora Lopes

Colaboração para o UOL, em São Paulo

29/07/2019 08h15

Resumo da notícia

  • Polícia cruzou DNA da cena do crime com banco de empresa de testes caseiros
  • O resultado apontou parentes distantes e levou ao nome de um suspeito, 30 anos após o crime
  • Pela primeira vez, um julgamento aconteceu após pistas levantada pela genealogia genética
  • William Earl Talbott II foi condenado a prisão perpétua pelo assassino de casal
  • Surge um novo debate: os dados desses bancos de DNA pode ser usados sem autorização?
  • Especialistas dizem que é um preço muito alto a se pagar

Talvez você ainda tenha dado muita bola para a popularização dos testes de DNA online. Fáceis de usar e baratos, eles viraram uma febre nos EUA e já começam a fazer sucesso também no Brasil. Tem gente que já usou para achar parentes distantes ou para descobrir alguma predisposição a certas doenças. Com R$ 220, um pouco de saliva e alguns cliques, você desvenda sua árvore genealógica e aprofunda seu histórico de saúde.

Neste ano, no entanto, o teste ganhou os holofotes da mídia internacional por outro motivo. Ele foi usado para resolver um crime de assassinato que estava arquivado há anos, sem solução. E, pela primeira vez, o autor do crime foi condenado.

O crime

Esta história começa em 1987. Era uma quarta-feira quando os canadenses Jay Cook, 20, e sua namorada Tanya Van Cuylenborg, 18, que namoravam há seis meses, deixaram a província de British Columbia, no Canadá. Eles planejavam cruzar a fronteira com os Estados Unidos de van para chegar até a cidade de Seattle.

Mas, sumiram, e logo a família notificou as autoridades. Pouco menos de uma semana depois, a polícia encontrou o corpo de Tanya seminu em uma vala, no estado de Washington (EUA). Ela havia sido estuprada e morta com um tiro na parte de trás da cabeça. Amostras colhidas de seus genitais continham esperma.

Dia depois, a polícia encontrou a van que o casal dirigia e, nela, uma calcinha da garota, também com vestígios de esperma. O corpo de Jay Cook foi achado logo em seguida, embaixo de uma ponte do condado de Snohomish.

Os documentos da autópsia mostram que o rapaz foi estrangulado, espancado na cabeça com pedras e, acentuando os requintes de crueldade, o assassino ainda lhe enfiou um maço de cigarros dentro da boca. O esperma que foi encontrado em Tanya não pertencia ao namorado, então Jay logo foi descartado como suspeito inicial.

Na época, os investigadores inseriram a amostra genética do criminoso na base de DNA do FBI, a polícia federal norte-americana, mas nenhuma relação foi encontrada. Apesar do esforço investigativo de três condados diferentes e dois países, o brutal homicídio do casal ficou sem resposta e foi arquivado por décadas... Até que, em 2018, um genealogista de Snohomish jogou aquelas amostras de DNA do suspeito no GEDMatch, um banco de dados online. O cruzamento de dados apontou um primo por parte de mãe e outro primo por parte de pai do suspeito.

  • O mapeamento do DNA identifica genes similares em localidades próximas, dando indícios de onde uma pessoa veio e para onde certos genes foram. Isso facilita a busca por ancestrais, mas também rastreia possíveis riscos de saúde

Foi assim que chegaram a William Earl Talbott II, 56, um caminhoneiro que tinha 24 anos e vivia perto do local do crime à época.

Da saliva ao tribunal

Quando Talbott virou suspeito, contou o promotor do caso, Justin Harleman, ao jornal "The New York Times", a polícia passou a segui-lo até conseguir colher um copo de café descartável usado por ele e com amostrar de saliva. Essa amostra revelou que o DNA do caminhoneiro era o mesmo encontrado na cena do crime.

Quase trinta e dois anos depois dos assassinatos, em 24 de junho de 2019, Talbott foicondenado a duas sentenças de prisão perpétua, uma por cada crime.

Segundo Harleman, a genealogia genética, como é chamado o mapeamento de DNA de uma população, foi só uma "pista" em meio a uma investigação --a defesa alegava que só o teste de DNA não era suficiente para a condenação.

Mas, o que aconteceu no tribunal foi que um único DNA foi considerado suficiente para a condenação. Por isso, o caso virou um marco histórico e confirmou que a técnica deve dar um novo rumo para uma infinidade de casos que nunca foram resolvidos pela polícia --nem pela ciência.

Uso de dados sem mandado

Tudo parece incrível do ponto de vista das investigações, mas qual o limite entre solucionar um crime e usar inadvertidamente dados de pessoas que só fizeram o teste para compor sua árvore genealógica? É esse o debate que os especialistas agora encabeçam.

"A que custo podemos atravessar a questão da privacidade dos dados?", questiona Michel Naslavsky, doutor em genética e professor do Departamento de Genética e Biologia Evolutiva do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP).

"As pessoas que enviam seus DNAs para testes de ancestralidade estão fazendo aquilo voluntariamente e com o intuito muito específico, que é de autoconhecimento, encontrar parentes etc", diz.

Os testes de ancestralidade de empresas como 23andMe e MyHeritage, que se tornam cada vez mais acessíveis (a ponto de muita gente prever que ele será vendido em farmácias, como os testes de gravidez), fazem surgir uma base de dados gigantesca de material genético, o que fez os olhos da polícia brilhar.

Para você ter uma ideia, calcula-se que cerca de 20 milhões de pessoas fizeram este tipo de teste de DNA no ano passado.

A popularidade do teste fez com que a empresa FamilyTreeDNA lançasse um comercial na TV nos EUA, convocando a população que já possui o teste de ancestralidade a disponibiliza-los em seu banco de dados online para ajudar na captura de criminosos -- o que aumentou ainda mais a polêmica.

Num outro caso, em andamento, a defesa de Jesse Bjerke, um homem acusado de estupro na Virgínia (EUA) e identificado pela genealogia genética a partir do GEDmatch, alega que o DNA não pode ser considerado como prova, porque a montagem e o teste de um perfil genético sem mandado viola a Constituição norte-americana.

"Conforme aumenta a base de usuários e as estatísticas vão melhorando, a tendência é caminharmos para uma sociedade onde nosso DNA seja público, como fazemos com nossas fotos nas redes sociais", acredita Daniel Schultz, professor de microbiologia e membro do núcleo de ciências computacionais em Dartmouth (EUA), especialista em biologia experimental.

No Brasil, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, propôs expandir os bancos de dados biométricos, aumentando o tempo de manutenção dos perfis genéticos para até 20 anos após o cumprimento da pena, e criar um arquivo com impressão digital, face, íris e até voz.

Isso pode ser eficaz para tentar reduzir os problemas de segurança pública brasileiros. Mas a mesma tecnologia usada pela polícia e justiça para investigar crimes pode ser utilizada por criminosos para escapar da justiça, explica Shridhar Jayanthi, especialista biologia sintética e colunista do UOL.

Segundo ele, "é extremamente simples sintetizar sequências customizadas de DNA". "Em 2009, a empresa israelense Nucleix demonstrou a viabilidade desse método como forma de criar provas falsas. O interesse da empresa na época era vender um sistema capaz de discriminar DNA sintético de DNA biológico."

Além disso, ressalta Jayanthi, os resultados também podem ser comprometidos pela quantidade reduzida de material genético coletado. E o vazamento da sequência de DNA de um indivíduo que fez esses testes comerciais de ancestralidade ou saúde pode ser usado para criar um DNA específico para incriminar alguém. Sim, é possível.

Segundo ele, isso "não significa que devemos abandonar o uso de DNA, apenas que a justiça utilize o DNA de forma ponderada."