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Crise do CNPq: como chegamos a esse ponto e o que a ciência do Brasil perde

Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações - Cleia Viana/Câmara dos Deputados
Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações Imagem: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

Rodrigo Lara

Colaboração para Tilt, em São Paulo

29/08/2019 04h00

Sem tempo, irmão

  • Responsável por 84 mil bolsas, CNPq está com déficit de R$ 330 milhões
  • Crédito adicional está em análise no Ministério da Economia desde 1º de março
  • Bolsistas dizem que parte da produção científica do país corre o risco de parar
  • Alternativas seriam Capes, do MEC, ou dinheiro de entidades privadas

A pesquisa científica no Brasil pode levar um duro golpe em breve. A razão para tal é que, a partir de outubro, as bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) podem deixar de ser pagas. O motivo? O dinheiro da entidade para este ano está no fim.

A informação foi trazida a público pelo ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, durante uma entrevista ao programa "Em Foco", do canal de TV por assinatura GloboNews, que foi ao ar nesta quarta-feira (28). E representa o ápice de uma crise que ronda o Conselho —responsável pelo pagamento de 84 mil bolsas— nos últimos meses.

Em julho, o CNPq suspendeu a divulgação de edital para concessão de novas bolsas de pesquisa por não ter recursos para tal. Já no início de agosto, a entidade revelou que já havia usado 88% de toda a verba de 2019 destinada ao pagamento de bolsas.

Para fechar a conta, o CNPq precisaria de mais R$ 330 milhões. Não se trata de uma informação nova, uma vez que a entidade já previa esse déficit em suas contas desde a aprovação da Lei Orçamentária Anual (LOA) de 2019, que aconteceu em 20 de dezembro do ano passado.

Esse crédito adicional, por sua vez, está em análise no Ministério da Economia desde 1º de março —o valor inicial, de R$ 310 milhões, foi revisto para R$ 330 milhões em 30 de julho. A sua liberação era uma condição para que o governo federal tivesse o pedido de crédito suplementar de R$ 248 bilhões aprovado pelo Congresso Nacional, o que ocorreu em 11 de junho.

Mesmo com o fôlego financeiro extra aprovado pelo Congresso, até o momento a verba destinada ao CNPq não foi aprovada pelo Ministério da Economia. E pior: não há uma previsão concreta para que isso aconteça.

Procurado pelo Tilt para comentar sobre o assunto, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações disse que tem se empenhado junto ao Ministério da Economia e a Casa Civil para resolver a situação orçamentária do CNPq e que agora só depende do repasse do dinheiro previsto na LOA para o conselho.

O MCTIC informa ainda que não houve contingenciamento e que repassou integralmente ao CNPq os recursos previstos na Lei Orçamentária para o ano de 2019. O valor de R$ 330 milhões é que falta para cobrir os custos das bolsas até o fim do ano, situação que já estava prevista na aprovação da LOA em 2018. Portanto, é necessária a aprovação de crédito suplementar para recompor o orçamento do CNPq
Nota do Ministério da Ciência

Como seria a pesquisa sem bolsas?

"A minha carreira acadêmica não existiria. Imaginar um pesquisador sem bolsa é como pensar em alguém trabalhando sem receber qualquer salário", diz Laura de Freitas, doutora em Biociências e Biotecnologia, cofundadora do canal do YouTube Nunca vi 1 Cientista, dedicado às ciências, e bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).

É o mesmo ponto de Ana Bonassa, doutora em Ciências e parceira de Freitas no canal do YouTube. "Após terminar a graduação, eu estaria em qualquer outra área, fora da pesquisa científica. Tenho vários exemplos de amigos que se formaram comigo e saíram da área. Não ter bolsa após a graduação é ruim para a ciência, que perde, e muito, recursos humanos", diz.

A possibilidade das bolsas do CNPq deixarem de ser pagas preocupa o meio acadêmico. "Eu considero isso como uma emergência nacional. Sem essa verba, os laboratórios não se sustentam e a ciência nacional para", diz Alícia Kowaltowski, professora e vice-chefe do departamento de Bioquímica no Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP).

Em geral, as instituições recebem a verba proveniente de entidades como CNPq e distribuem internamente, usando critérios como a classificação dos aspirantes a bolsa.

Kowaltowski ressalta que a situação já estava crítica desde que o CNPq parou de aprovar a concessão de bolsas. E, aqui, não se trata da criação de novas bolsas, mas sim a "transferência" de bolsas de quem já defendeu sua tese, ou terminou a pesquisa, aos novos estudantes.

Mesmo em um contexto de crise econômica, cortes nos investimentos em ciência e tecnologia não são uma boa ideia. "Os países que melhor superaram momentos de crise foram os que investiram nessas áreas", diz ela.

As bolsas pagas pelo CNPq variam entre R$ 100, no caso da Iniciação Científica Júnior, até R$ 14 mil para Pesquisador Visitante Especial, casos pontuais de pesquisadores internacionais líderes em sua área que se disponham a passar um mês no Brasil a cada ano, por até três anos. A lista de valores pode ser vista aqui.

Além disso, parte da verba do conselho é destinada à manutenção de laboratórios. Uma vez que esse dinheiro não chegue ao seu destino, pesquisas em andamento são suspensas e não há como começar novos estudos.

Supondo que a verba do CNPq, de fato, não chegue, os pesquisadores terão que depender de outras entidades, como a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), ligada ao Ministério da Educação e que atua em nível nacional; e as entidades de fomento à pesquisa estaduais, como a Fapesp, que existem em cada estado da federação. E uma situação do tipo poderia causar outros problemas.

"Quem estiver no estado de São Paulo ficaria em uma situação um pouco menos pior, já que a verba da Fapesp é a maior do país, considerando órgãos similares em outros estados. A tendência, porém, é que o conhecimento fique ainda mais concentrado em São Paulo e que a Fapesp acabe sobrecarregada e faça cortes de financiamento", diz Freitas.

"Teria uma discrepância cada vez maior entre as pesquisas nos diferentes estados. Para contornar algo do tipo, teríamos que ter pessoas que se dedicassem à vida acadêmica por amor, o que só é possível para quem é rico. É uma situação extremamente elitista e lembraria como a ciência era feita antigamente, antes das bolsas. De novo, a ciência perde e muito", completa Bonassa.

Outra opção seria ter apoio do setor privado. Ainda que existam iniciativas do tipo, como o Serrapilheira, elas são isoladas. "Quando falamos sobre o financiamento proveniente de indústrias, o normal é que ele seja destinado a projetos dentro de um grupo de pesquisa, não a instituição ou a pós-graduação como um todo", salienta Freitas.

E a ciência no Brasil?

Nessa hora você pode estar se perguntando: "tá, mas o que essas pesquisas fazem no Brasil?". Primeiramente é preciso separar a ciência básica da ciência aplicada. Muitas pesquisas se enquadram no primeiro tipo —isto é, não buscam encontrar soluções práticas a princípio, mas sim criar conhecimento que pode servir de referência para descobertas futuras.

"Uma forma de explicar isso seria assim: a ciência básica seria como pesquisar a utilidade da farinha de trigo ou do fermento, enquanto a ciência aplicada seria produzir um bolo em si", exemplifica Freitas.

Em geral, feitos científicos que recebem prêmios Nobel se referem à ciência básica.

Para Bonassa, ficar sem ciência é "parar no tempo". "Ficamos sem entender como a natureza funciona e à mercê dela". Ela cita como exemplo a pesquisa sobre diabetes e como é necessário entender todos os pormenores da doença para fomentar o conhecimento nessa área e, talvez, daqui a alguns anos chegar a uma cura. E, com isso, salvar vidas.

Sem bolsas de pesquisa no Brasil, dificilmente veremos descobertas pioneiras em todo o mundo, como o uso da pele de tilápia como curativos, a criação de um gel de gengibre que previne amputações em caso de diabetes, o transplante de útero proveniente de doadora morta ou descobrir utilidades para materiais inusitados, como a casca da macadâmia.

Em resumo: há muito a se perder.

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