Por que o Google vai ter que pagar US$ 170 mi por causa do YouTube?
Sem tempo, irmão
- Google pagará US$ 170 milhões por invadir a privacidade de crianças americanas
- Tilt passou algumas horas no Youtube Kids, app com maior controle por parte dos pais
- É fácil flagrar na plataforma conteúdos apresentados por crianças e com publicidade velada
- A legislação brasileira não é muito clara sobre o assunto
Se você quiser fazer um slime brilhante, você só precisa de cola com glitter e ativador, mexer até dar liga e tudo certo. Como eu sei? Aprendi assistindo horas e horas de YouTube Kids, a versão para crianças da plataforma de vídeos do Google. O slime pode até ser inodoro, mas há muita coisa cheirando a problema entre os baixinhos.
O Google sabe bem que o YouTube tem problemas. Aprendeu pelo bolso. A empresa concordou em pagar US$ 170 milhões (o equivalente a R$ 700 milhões) para encerrar as acusações de que invadia a privacidade de crianças norte-americanas. O acordo saiu nesta quarta-feira (4).
A lei dos Estados Unidos que o a empresa era acusada de violar é a que proíbe a coleta de dados para destinar à publicidade online segmentada voltada a crianças menores de 13 anos.
A Comissão Federal de Comércio dos EUA (FTC, na sigla em inglês) apontou que o YouTube coletava dados de canais que, em teoria, eram direcionados a crianças maiores de 13 anos —mas, na prática, tinham um público ainda mais jovem. Entre os canais investigados, por exemplo, estavam alguns com musiquinhas infantis, desenhos animados e vídeos de pessoas abrindo brinquedos para crianças.
O ambiente seguro do YouTube
Disputas à parte, no entanto, o YouTube clama que tem um espaço seguro para crianças de até 13 anos, o YouTube Kids. Foi nele que me aventurei por algumas horas.
O Google descreve o YouTube Kids como "ambiente mais seguro para crianças explorarem seus interesses e curiosidade, enquanto dá aos pais ferramentas para customizar a experiência de seus filhos". Tanto a maior segurança quanto o controle dos pais são inegáveis: a plataforma não permite conteúdos sensíveis, com violência ou palavrões.
Os responsáveis também conseguem saber tudo que seus filhos viram —e até controlar por quanto tempo eles podem assistir aos vídeos. Para afastar problemas com pedofilia em comentários, o aplicativo do YouTube Kids não permite comentar ou "curtir" vídeos, nem mesmo se inscrever em canais —como esses conteúdos estão disponíveis na versão para todos do YouTube, é possível fazer tudo isso por lá. Ainda assim, a plataforma está longe de ser perfeita.
Lar dos youtubers mirins
Nas três horas e meia em que passei no YouTube Kids, foi fácil notar um padrão: boa parte dos vídeos indicados é protagonizada por crianças. Elas coordenam os vídeos, algumas chamam vinhetas, pedem "likes" e inscrições, se despedem chamando para o próximo episódio. Verdadeiras apresentadoras de TV. Isso por si só já é um problema.
Como não há uma definição legal sobre youtubers mirins no Brasil, alguns juristas enquadram as crianças na mesma categoria dos apresentadores de TV menores de idade. É o chamado "trabalho infantil artístico". Neste caso, o Supremo Tribunal Federal determinou que uma autorização judicial seja emitida, para permitir que essas crianças atuem - na prática, no entanto, o documento nunca é requisitado.
Se as regras da televisão são cumpridas, então por que as do YouTube não são? Porque na TV você tem uma produção de conteúdo controlada, com números muito mais fáceis de acompanhar. No YouTube não, o volume é muito maior
Luciana Corrêa, pesquisadora associada da ESPM Media Lab
Ela estuda o fenômeno das crianças na plataforma desde 2015. "O que assusta no Brasil é a quantidade de canais infantis. Se você olhar os 100 maiores do Brasil, consegue visualizar que existe um número considerável de crianças. Isso é mais raro em outras partes do mundo", conta.
Publicidade escondida
Outra presença recorrente, que aparece logo nos primeiros vídeos, é a de produtos desejados pelas crianças. Um dos vídeos mostrados mostrava um youtuber adulto avaliando materiais escolares temáticos da Disney. Em seguida, ele exibe e elogia durante um bom tempo uma mochila dos Minions — que custa cerca de R$ 250.
Outro vídeo era inteiramente apresentado por uma menina de oito anos. Ela visitava uma loja de doces de uma única marca de balas, onde provou diversos sabores. No fim, dizia o endereço do local e chamava os seguidores para uma visita. Em ambos os casos, não é dito que se trata de publicidade.
Se você conseguir provar que o anunciante paga, ou mesmo dá esses presentes, pois há um custo envolvido nesse processo, dá para enquadrar em um caso de publicidade velada, o que pode render multa. Há outros tipos de fazer isso sem identificar. O exemplo famoso é anunciantes entregarem [produtos] para crianças fazerem unboxing
Denise Frabretti, professora de Ética e Legislação da ESPM.
E no Brasil?
Mas, afinal, o processo dos norte-americanos também diz respeito às crianças brasileiras? A nossa legislação também foi violada? Difícil dizer, até porque o Brasil não tem exatamente leis sobre o assunto.
"Apesar de alguns países já terem uma legislação robusta sobre a relação entre publicidade e crianças, aqui no no Brasil ainda estamos construindo algo. O que é feito hoje é considerar alguns códigos e normas para evidenciar que há uso abusivo", comenta Ingrid Sora, integrante da Comissão de Direito Infantojuvenil da OAB-SP.
Entre os principais artigos que servem de bússola na hora de saber o que é ou não contra as regras, os mais importantes são:
- Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que prevê a restrição da publicidade pra criança;
- Código de Defesa do Consumidor (CDC), que, em os artigos 37 e 39, veta anúncios que explorem a falta de experiência das crianças.
Ainda assim, a falta de legislações específicas sobre o assunto dá margem a discussões.
O que o Google diz?
Procurado pelo Tilt, o Google enviou um comunicado. A nota dá a entender que o problema passa pela falta de supervisão de pais e responsáveis enquanto as crianças assistem a vídeos no YouTube.
"Estamos investindo pesado em políticas, produtos e práticas que ajudem a atingir esse objetivo. Desde o início, o YouTube se propôs a ser um site para usuários com mais de 13 anos. No entanto, diante do crescimento acentuado no conteúdo dirigido a famílias e nos aparelhos compartilhados por pais e filhos, sabemos que a probabilidade de crianças assistirem vídeos sem supervisão aumentou", afirma o texto.
O Google prometeu ainda que, nos próximos quatro meses, fará uma mudança em sua plataforma de vídeos. Quando isso ocorrer, todo vídeo infantil deverá obedecer às regras usadas para no YouTube Kids. Isso significa que, mesmo em uma conta de adulto, as coletas de dados serão restringidas, comentários serão proibidos e nenhum tipo de propaganda personalizada será permitida.
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