Já imprimimos órgãos humanos; bioimpressão 3D é futuro dos transplantes
Sem tempo, irmão
- Tecnologia de bioimpressão 3D pode ser utilizada para transplantes
- Ao utilizar células do próprio receptor, chance de rejeição seria eliminada
- Grupo da USP trabalha para produzir o primeiro fígado bioimpresso
Para um leigo, o resultado pode parecer inexpressivo: um cubinho de material biológico de 1 cm de largura, altura e profundidade. Mas esse pequeno objetivo produzido no Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da USP é uma amostra de como avanços tecnológicos têm nos aproximado do que antes parecia coisa de ficção científica. Trata-se de um fígado humano em escala criado por uma bioimpressora 3D.
"O nosso objetivo é ser os primeiros pesquisadores do mundo a criar um fígado em laboratório a partir de células de um potencial receptor utilizando bioimpressão", diz Ernesto Guimarães, que faz pós-doutorado no Centro e é um dos responsáveis pelo projeto.
A meta é ambiciosa, mas Ernesto acredita que é possível atingi-la. Numa área em que qualquer novidade é recebida com entusiasmo e expectativa, 2019 têm sido um ano interessante. Em abril, um grupo de cientistas israelenses divulgou que havia impresso um modelo completo de coração humano de cerca de 3 cm.
Assim como no caso do fígado da USP, a grande vantagem de órgãos produzidos desta forma é acelerar a fila de transplantes além de eliminar, em teoria, as chances de rejeição, já que são feitos a partir das células da pessoa que irá recebê-los.
Mas é importante frisar que ainda há anos de distância até que essa tecnologia seja utilizada de maneira ampla em hospitais pelo mundo.
Orelha nas costas
A bioimpressão 3D é uma ramificação da engenharia de tecidos, que se dedica desde os anos 80 a produzir tecidos biológicos em laboratório. Na época, já era possível fazer isso, mas não havia tridimensionalidade no resultado - era possível cultivar células de um coração, mas não um coração no seu formato real.
Por conta disso, um marco desse campo foi o desenvolvimento de uma orelha nas costas de um camundongo em meados dos anos 90, uma imagem que rodou o mundo. Ali estava a tridimensionalidade.
Com a popularização das impressoras 3D há cerca de dez anos, surgiram novas possibilidades. A mecânica é semelhante das máquinas tradicionais capazes de criar desde brinquedos até armas de fogo e próteses.
No lugar dos polímeros —o material utilizado para imprimir os objetos—, as bioimpressoras usam biotinta, um hidrogel de textura semelhante a gel de cabelo composto de material biologicamente compatível ao qual podem ser adicionadas células do tecido que será produzido.
Fígado em um minuto
No Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco, a máquina utilizada é uma Inkredible, cujo custo é de cerca de US$ 20 mil. Instalada em uma pequena sala que Ernesto chama de 'oficina de órgãos', a bioimpressora fica ao lado de uma série de equipamentos utilizados para mimetizar o funcionamento dos órgãos dentro do corpo humano.
Eles são impressos a partir de esquemas obtidos a partir de tomografias, baixados de repositórios da internet ou projetados em softwares CAD, voltados para criação de projetos em 3D.
No caso do fígado, o processo demora cerca de um minuto. A partir daí, ele é levado a um biorreator. "Nesse equipamento nós controlamos fluxos de pressão, e oxigenação", afirma o pesquisador. "Nós já conseguimos manter ele funcional por até dois meses. A partir daí, começa a ficar caro e sem propósito."
As células utilizadas na impressão do fígado são produzidas a partir de células tronco obtidas em biópsias simples. Na pesquisa, o intervalo de tempo entre admissão do paciente e ter o modelo em escala do órgão é de 90 dias.
"O resultado que temos tido é muito bom. Conseguimos produzir um fígado que não funciona em toda sua complexidade, a parte secretória, do bile, vesícula biliar, isso não consegue. Mas a parte metabólica consegue muito bem", diz Ernesto. "É um indicador que estamos no caminho certo."
Nem tudo são flores
No entanto, há aspectos complicados desse processo. Ainda é um desafio reproduzir a vascularização e a enervação nos órgãos, por exemplo. Para completar, esse tipo de pesquisa só vai certo tempo dentro da academia. Na hora de escalonar a produção, o volume de investimento aumenta de forma considerável.
"Aí já não é mais pesquisa de base, é pesquisa aplicada, precisa sair da universidade. Quando pensa em testar, vender, saí da academia", fala o pesquisador, que acredita no início de testes clínicos com transplantes de órgãos bioimpressos daqui há dez anos.
Isto é, se não acontecer nenhum salto tecnológico no caminho. Cinco anos atrás, terapias genéticas eram impensáveis. Mas com o surgimento de técnicas de edição de genes como CRISPR, já há estudos na área. "Se existir alguma revolução na área de bioimpressão, esse intervalo de uma década pode ser reduzido drasticamente", diz Ernesto.
Pele para testes
Não é só no campo dos transplantes que a bioimpressão 3D é promissora. Empresas de cosméticos investem na área para criar tecido adiposo. A ideia é utilizar essa pele artificial para testes de novos produtos com o objetivo de reduzir a experimentação em animais. É o caso da L'Oréal, por exemplo.
Assim como no caso da impressão de órgãos, é uma realidade que ainda parece distante. Mas só de imaginar que ela já existe em laboratórios ao redor do mundo a fronteira da ficção científica parece próxima de ser cruzada.
"A ficção científica é uma grande fonte de inspiração para a ciência, a exploração da criatividade humana com o propósito de entender o que pode ser razoável ou não", diz Ernesto. "Por muito tempo, acreditava-se meio distante naquela ideia de entrar na máquina e reconstruir um braço. Com a impressão 3D de tecidos biológicos, já não está tão distante."
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