Como porcos modificados poderão reduzir fila de transplante de órgãos
Sem tempo, irmão
- Porcos de fazenda da Alemanha carregam órgãos mais propensos a serem transplantados em humanos
- Animais têm três modificações genéticas para impedir que babuínos e humanos rejeitassem seus órgãos
- Mas ainda não há consenso sobre número de edições genéticas necessárias para aproximar porcos de humanos
Cerca de 50 pessoas devem ser beneficiadas pela doação dos órgãos do apresentador Gugu Liberato, que morreu no mês passado. O gesto relembrou parte do drama da fila de pacientes à espera de transplante de órgãos no país. E uma das esperanças em estudo pela ciência está no xenotransplante, o transplante de órgãos entre diferentes espécies.
Um artigo publicado recentemente na revista MIT Technology Review mostrou os avanços mais recentes na área com uma espécie bem diferente da nossa: porcos de uma fazenda na Bavária, na Alemanha.
Na fazenda, porcos modificados geneticamente carregam órgãos mais propensos a serem transplantados em humanos num futuro próximo —inclusive o coração. No local vivem cerca de 120 porcos adultos editados por genes e 150 leitões.
Estes porcos têm três modificações genéticas feitas para impedir que babuínos e humanos rejeitassem seus órgãos:
- Retiraram um gene que produz um açúcar chamado galactosiltransferase, que impedia que o sistema imunológico do destinatário rejeitasse imediatamente um órgão de uma espécie diferente
- Acrescentou um gene que faz manifestar-se o CD46 humano, uma proteína que ajuda o sistema imunológico a atacar invasores estrangeiros sem exagerar e causar doenças autoimunes
- Introduziram um gene para uma proteína chamada trombomodulina, que impede coágulos sanguíneos que seriam capazes de destruir o órgão transplantado.
No centro de Munique, são os babuínos que receberam corações dos porcos. Ao todo, 14 já foram transplantados, e dois deles sobreviveram por seis meses — um recorde até agora.
O próximo passo é fazer com que esses animais transplantados não tenham tanta dependência de remédios anti-rejeição. Aperfeiçoar o sistema imunológico é ainda o grande desafio.
Outra questão é o tamanho dos corações, que nos porcos são maiores que nos primatas. Isso levou os pesquisadores alemães a desativaram o gene receptor do hormônio do crescimento nos animais.
Manter os porcos em um ambiente antisséptico é também um entrave, já que eleva os custos da criação.
Entre janeiro e setembro deste ano, ao menos 19.331 pacientes tiveram órgãos, tecidos ou medula óssea transplantados no país, segundo a ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos). Mas, a fila para receber o transplante é bem maior: 36.468 pacientes.
O Brasil ocupa atualmente a 23ª colocação no ranking mundial de transplantes, com 16,6 pmp (por milhão de pessoas). A taxa nos EUA, onde ficarão os órgãos de Gugu por uma questão logística, é de 32 pmp.
Se bem sucedido, o xenotransplante a longo prazo seria capaz de reduzir bastante esta fila. Mas ainda não há consenso, entre cientistas, sobre o número de edições genéticas necessárias para aproximar porcos de humanos.
Os primeiros testes com os órgãos desses animais já estão acontecendo. Na China, os pesquisadores transplantaram células das ilhotas pancreáticas produtoras de insulina de porcos editados para pessoas com diabetes.
Na Coréia do Sul, uma equipe se prepara para transplantar córneas de porcos nas pessoas assim que receberem a autorização do governo.
E, no Hospital Geral de Massachusetts, pesquisadores acabam de anunciar que uma pessoa com queimaduras graves recebeu uma cobertura temporária para as feridas por meio da pele de porco também editado geneticamente. A cobertura foi chamada de "adesivo".
Mas, quando se trata de órgãos vitais, como corações e fígados, esse tipo de transplante ainda acende uma série de alertas.
Mesmo após 35 anos, ainda repercute a história de Baby Fae, como ficou conhecida a garota que recebeu o coração de um babuíno em 1984 e morreu 20 dias depois com problemas imunológicos.
O procedimento chegou a ser chamado de "aventura médica" na época, conforme lembrou a reportagem do MIT Technology Review. Desde então, os porcos, e não os macacos, se tornaram objetos de pesquisa neste campo, já que seus órgãos têm anatomia semelhante ao de humanos e eles atingem a idade adulta mais rapidamente do que os primatas.
Presidente da ABTO, o médico Paulo Pêgo Fernandes lembra uma frase de Norman Shumway, pioneiro nos estudos de transplante de coração nos EUA, para resumir a discussão: "Xenotransplantes é a terapia do futuro. E sempre será".
Pêgo Fernandes lembra que, após a frustração com os primeiros experimentos, sobretudo na questão imunológica, nos anos 1990 houve notícias de avanço nas pesquisas de transplante com porcos. Tudo foi suspenso após a epidemia da vaca louca e o medo generalizado de transmissões de vírus e bactérias para humanos.
Os avanços recentemente divulgados são animadores, mas ainda passíveis de questionamentos, segundo ele.
"Se você tem animais que podem produzir órgãos, não precisaria de doadores", diz ele. Isso resolveria a questão da fila e também da logística do transporte dos órgãos do doador, geralmente vítimas de acidentes, até o receptor.
Por outro lado, pondera, "tem muita coisa que a gente ainda não aprendeu" na questão do xenotransplante, sobretudo no campo da imunização. "A cada ano se descobre mais vírus, bactérias e suas mutações."
Ele afirma, porém, que é o xenotransplante é um campo em evolução, assim como os estudos relacionados a criação de órgãos artificiais, bioimpressão e células-tronco. "A ciência tem procurado várias alternativas. O xenotransplante é uma delas."
Por esta razão, é difícil prever quando esse tipo de transplante será uma realidade. "Não sinto ainda que seja algo maduro", diz. Mas ele lembra que a sociedade é, em sua maioria, pragmática e tende a aceitar as mudanças conforme os testes se mostrem bem-sucedidos.
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