Se a internet apaga os dados, quem vai zelar pela nossa história digital?
Resumo da notícia
- É provável que suportes materiais atuais para registro de dados estejam obsoletos no futuro
- Fartura de registros é facilitada por empresas privadas como Google e Facebook
- Mas se usuário morre ou empresa fecha as portas, esses dados podem se perder
- Formação de cientistas de dados e iniciativas de arquivo podem ajudar a manter parte dos dados
Olhe ao redor e procure as pegadas da ação humana. Você enxerga um celular ali, nota um notebook desligado no canto, cadernos e folhas soltas marcadas a caneta sobre uma mesa. Agora imagine-se no ano de 2519, e que sua tarefa é entender a história de 500 anos atrás. No arranque tecnológico em que vivemos, é provável que quase todo suporte material atual para registro de dados esteja obsoleto em 2519. De que serve, por exemplo, uma fita cassete sem um tocador?
Se hoje a lógica do "quanto menor o dispositivo, maior o acervo" já nos assombra, o que acontecerá com todo o conteúdo gerado nas redes? Armazenada na nuvem, a quem pertence a narrativa de bilhões de pessoas e todo o volume de dados digitalizados? O trabalho do historiador que quiser fazer um balanço dos anos 2000 será tão ou mais complexo que o de um pesquisador que estuda a Idade Média, por exemplo?
Abundância: faca de dois gumes
O futuro da informação nunca foi tão pouco palpável, mas o excesso de fatos históricos não é exatamente a raiz do problema. O historiador Renato Rodrigues da Silva pesquisou a aristocracia inglesa na Alta Idade Média. Fontes primárias produzidas no período estudado na sua pesquisa, que sobreviveram até nossos dias, são poucas.
Professor de história medieval da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em Guarulhos (SP), ele afirma que a história não é feita a partir do conhecimento de uma amostra gigantesca de fontes. "A história não é o passado, apenas; como campo científico, ela é o conhecimento que se tem deste passado. O passado nunca muda; o conhecimento que temos dele muda sempre", complementa.
Como exemplo, ela compara a fonte histórica à testemunha no tribunal: ela só responde quando perguntada. "Para cada tipo de pergunta, uma testemunha pode ser melhor que outra. Você não seleciona de primeira alguém com deficiência visual para ser testemunha ocular de um crime."
A questão de algoritmos e redes sociais
Com um smartphone o tempo todo no bolso, coletamos e registramos toneladas de dados em nossas vidas, e parte deles serve de registro histórico. Mas a internet passa a ilusão de que temos algum controle sobre isso.
"Ao mesmo tempo em que a gente produz muita informação, esse registro nem sempre está acessível. Essas fotos podem 'sumir' quando eu morrer ou quando o próprio Facebook sumir — é só pensar no Orkut e toda a memória que estava lá e foi perdida", explica Mariana Valente, diretora do InternetLab e coordenadora do Creative Commons Brasil.
O mesmo vale para documentos armazenados digitalmente nas redes. "Eles de fato facilitam o acesso em relação a arquivos físicos, mas têm uma durabilidade muito pequena. Servidores e sites desaparecem, e a memória vai embora", diz Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP.
Daí a fartura de registros é facilitada por empresas privadas. "Se você procurar meu nome na internet, vai aparecer um monte de coisa que pode ser relevante sobre mim e outras que podem não ser. Mas o ponto central é que é o algoritmo do mecanismo de busca que você usa —por exemplo, o do Google— que determina o que vai vir antes do quê", afirma Mariana.
Sabemos por alto quais os critérios que o Google usa para organizar os resultados das buscas, mas não os detalhe dos algoritmos. E as regras também vão mudando com o tempo. Afinal, são determinadas por pessoas de uma empresa que tem seus próprios interesses.
Isso ainda é pouco questionado: os algoritmos são quase sempre vistos como neutros, que estariam devolvendo ao usuário a informação mais relevante. "A gente esquece que o aprendizado de máquina personaliza até mesmo as buscas. Um conteúdo que aparece para mim pode aparecer diferente para você", argumenta Mariana.
É preciso investimento
Para Sabina Leonelli, professora de Filosofia e História da Ciência na Universidade de Exeter (Inglaterra), qualquer dado e seus possíveis cruzamentos serão documentos históricos "em um futuro próximo", mas não sabemos se eles estarão acessíveis no longo prazo. Pense na dificuldade que é hoje ler um disquete ou uma fita VHS. Nada disso tem 100 anos. Imagine daqui a 500.
"A informação digital pode se revelar muito menos duradoura que a de papel, especialmente pela escassez de investimentos na preservação da memória digitalizada. Além disso, temo que a crescente exclusão digital que vemos agora vá se tornar ainda maior. Grupos menos favorecidos terão menos recursos de preservar dados sobre seu passado e história", diz Leonelli.
Lucas Lago, mestre em engenharia da computação pela USP, criou um bot de transparência no Twitter. Chamado projeto7c0, copia e arquiva tuítes de políticos, para guardar mesmo o que é apagado. "O que é publicado digitalmente pode ser alterado, então devemos criar ferramentas para preservar", explica.
"Por mais que o Twitter queira garantir a privacidade das postagens realizadas ali, e até mesmo o direito ao esquecimento, a Constituição diz que discursos de administradores públicos devem ser públicos", diz Lucas, detalhando o objetivo de seu projeto.
Iniciativas como a dele, no entanto, cobrem recortes pequenos dessa história digital. A pesquisadora Lee Humphreys, professora-assistente de Comunicação da Universidade Cornell, nos EUA, duvida que, no futuro, historiadores e usuários comuns tenham mais facilidade — ou oportunidade — de acessar esses bancos.
O armazenamento e o gerenciamento de dados de mídia social não são apenas vastos; são muito complexos. Há grandes chances de os historiadores terem dificuldade em acessar a maioria dos dados digitais. Em uma pesquisa, concluímos que as pessoas guardavam mais fotos antes de comprar uma câmera digital do que depois de comprá-la. Não é apenas a criação de dados que importa, mas o armazenamento e o acesso subsequente que serão importantes para o futuro
Lee Humphreys
A ascensão das humanidades digitais
É por isso que habilidades em "humanidades digitais" devem se tornar indispensáveis aos historiadores nos próximos anos. Isso já está acontecendo em todos os campos do conhecimento e na arqueologia, que estuda a pegada humana por meio dos registros materiais deixados por nós — de utilitários triviais como vasos e talheres a equipamentos eletrônicos.
Sabina Leonelli acredita que os cientistas de dados não estão necessariamente sendo treinados para pensar historicamente. "Em meu trabalho, pude comprovar a facilidade com que os cientistas de dados muitas vezes usam dados sem investigar sua origem."
Em tempos de desinformação no WhatsApp, a chamada ciência cidadã transforma cada usuário das redes em um "ente participante", como define Mariana Valente. Todo mundo pode registrar, organizar e analisar informações, e discuti-las coletivamente. Construir sentido de forma coletiva e organizada é a razão de ser da internet.
"É importante fazer com que os curadores tradicionais, os museus, os arquivos, façam esse trabalho de organização levando em consideração como as informações são criadas hoje, mas os novos tipos de curadoria de informação precisam pensar numa política de preservação, em se entenderem como criadores de memória. Isso tudo vai além das instituições que já existem, no momento em que a produção descentralizou muito", alerta Mariana.
Em se tratando de órgãos oficiais e a nível federal, o Brasil está bem servido. Daniel Flores, doutor em ciência da informação e professor de arquivologia da UFF (Universidade Federal Fluminense) considera o Arquivo Nacional brasileiro "um caso de excelência", que faz uso do que há de mais moderno no mundo sobre a gestão e preservação digital.
Esse tipo de trabalho é fundamental, mas insuficiente. "Esta é uma questão de cidadania. Além dos órgãos públicos, a sociedade civil também tem o seu papel de fiscalização e acompanhamento", conclui.
* colaborou Rodrigo Trindade
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