Cambridge Analytica no Brasil? Emails vazados contam história de fracasso
Sem tempo, irmão
- Brittany Kaiser, ex-diretora da Cambridge Analytica, vazou arquivos da empresa
- Os emails trocados mostram as negociações para se estabelecer no Brasil
- Em 2018, 84 candidaturas poderiam gastar R$ 2 milhões em propaganda, segundo emails
- Há pouco indício de políticos abordados e muitas evidências de que firma teve dificuldades
Você se lembra do escândalo do Facebook com a consultoria britânica Cambridge Analytica? Em 2018, a Cambridge usou dados pessoais de milhões de usuários do Facebook para marketing político. Agora Brittany Kaiser, uma das funcionárias da consultoria, divulgou nesta quinta-feira (2) mensagens sobre as negociações para trazer a companhia ao Brasil antes das eleições de 2018.
Ainda que a empresa já tivesse trabalhado para campanhas bem sucedidas ao redor do mundo, como a de Donald Trump, nos EUA, e a do Brexit, no Reino Unido, as mensagens mostram, por outro lado, quais foram as dificuldades enfrentadas pela Cambridge e o profundo desapontamento de diretores estrangeiros com seu representante no Brasil.
O pacote divulgado por Kaiser tem arquivos com trocas de email entre maio de 2016 e janeiro de 2017, além de documentos promocionais sobre a atuação da consultoria traduzidos para o português, apresentações sobre dados do mercado nacional e uma reportagem a respeito da chegada da companhia ao Brasil.
As negociações
Os emails trazem muitas intenções da empresa, mas pouca coisa concreta. As mensagens giram em torno de dois eventos centrais. Um deles é a visita a São Paulo de Mark Turnbull, diretor responsável pelo setor de campanhas eleitorais dentro da Cambridge Analytica —é bom lembrar que a consultoria também oferecia serviços para campanhas de comunicação para empresas e outras áreas.
O segundo grande foco envolve o acordo com o consultor político André Torreta, presidente-executivo da Ponte Estratégia, que chegou a vingar por pouco tempo, e a tentativa de arregimentar a publicitária Gal Barradas para trabalhar no braço da empresa no Brasil.
A viagem ao Brasil acabou ocorrendo de fato no fim de outubro de 2016, mas não sem dissabores. Segundo contou Turnbull a Pedro Vizeu-Pinheiro, líder no Brasil da SCL Group (controladora da Cambridge Analytica), a ideia da visita era:
- Conhecer as oportunidades no Brasil, tanto junto a empresas e partidos políticos, quanto junto a um parceiro nacional;
- Tomar contato com os dados que poderiam ser explorados no país;
- Encontrar os principais candidatos à presidência, governos estaduais, Congresso Nacional e aos Legislativos estaduais para oferecer serviços.
O interesse não podia ser mais claro:
Nos próximos 18 meses, teremos 28 campanhas políticas e, pelo menos, 84 candidatos com orçamento em torno de R$ 2 milhões. Isso sem mencionar os contratos com governo federal e os 27 estados
Pedro Vizeu-Pinheiro, diretor da SCL Group no Brasil
Os emails, porém, mostram que os planos não saíram conforme o desejado. Em mensagem ao CEO da Cambridge Analytica, Alexander Nix, em 29 de setembro, Kaiser reclama que já havia cancelado reuniões e teleconferências com Torreta e Barradas duas vezes. E que ela não gostaria de cancelar o encontro entre Turnbull e os dois em São Paulo, pois isso poderia arranhar a credibilidade da empresa.
Caro Alexander, o que temos aqui é muita coisa. Tenho trabalhado duro para persuadir André e Gal a concordar se unirem a nós. Depois de Mark aceitar o convite deles para vir ao Brasil para fechar o acordo em São Paulo, eu não gostaria de estar na posição de ter de cancelar isso, já que destruiria nossa credibilidade. Então, se vocês quiserem abortar tudo, eu terei de repensar nossa abordagem sem eles --a que for possível. E que será talvez mais extensa e custosa, mas sempre procurando um cenário em que eu e vocês ganhemos dinheiro
Brittany Kaiser, em mensagem enviada a Alexander Nix, na época executivo-chefe da Cambridge Analytica em setembro de 2016
André Torretta anunciou em março de 2017 um acordo operacional de sua empresa, a Ponte Estratégia, que passaria a se chamar Cambridge Analytica Ponte (ou CA-Ponte). Na época, segundo reportagem da Folha, o marqueteiro dizia que o foco era "a transferência e a 'tropicalização' da metodologia de segmentação psicográfica, que traça o perfil psicológico dos eleitores" e defendia que "como empresário, vai onde o dinheiro está".
Na entrevista, ele explicou que o método da CA era diferente do perfil demográfico, que divide os indivíduos por classe social ou grau de instrução, por exemplo, e do perfil ideológico, que posiciona os eleitores no espectro de direita a esquerda. O trunfo da consultoria, ressaltava, era saber do que as pessoas têm medo e quais temas rejeitam, por exemplo. Ele esperava dividir os brasileiros entre seis e 12 perfis e atuar nas eleições de 2018.
Também dizia que pretendia usar o direcionamento das mensagens políticas para o WhatsApp —coisa que, segundo ele, os executivos da Cambridge Analytica ainda não haviam pensado em fazer.
Em entrevista à BBC Brasil, Torretta afirmou que, embora prometesse uma metodologia eficaz na segmentação de eleitores em categorias "psicológicas" (patriota, progressista, emocional, por exemplo), a Cambridge não tinha um banco de dados com perfis de brasileiros. A ideia, segundo o empresário, era que ele próprio corresse atrás de coletar dados de eleitores.
"Mas eu não iria pedir isso no Facebook. Imagina eu indo lá e pedir. O pessoal do Facebook ia rir da minha cara. Ia usar o que já tem disponível na rede social e fazer pesquisas em bairros, entrevistas, usar dados do IBGE", falou na época.
Segundo as mensagens, a associação a um parceiro brasileiro foi feita por orientação de Vizeu-Pinheiro. "Não há 'estrangeiros' trabalhando em consultoria política aqui. O último foi James Carville [estrategista político do Partido Democrata dos EUA] em 1996. Para entrar no 'segundo maior mercado político do mundo em gastos de marketing', é necessário um parceiro local", escreveu, em preparação para a vinda de Turnbull ao Brasil.
Vizeu-Pinheiro chegou a relatar que encontrou um candidato presidencial em maio de 2016, sem revelar seu nome. Mas, na hora de agendar encontros para Turnbull, não conseguiu cumprir a missão. Tanto que Turnbull reclamou energicamente com ele:
"Eu pouso na quarta pela manhã e estou livre até a tarde de quinta. Será uma tremenda oportunidade jogada fora se eu fizer toda essa viagem e tiver de ficar sentado em meu quarto de hotel atrás de um computador!"
Em seguida, Turnbull pediu a Kaiser para que ela acionasse alguns contatos no Brasil para agendar reuniões. "Brittany, eu me lembro que você tinha contatos em São Paulo que [talvez] eu pudesse encontrar? Não se preocupe se não tiver. É que o Pedro tem sido um tremendo desapontamento em organizar as coisas para mim."
No dia seguinte, ela conseguiu de última hora um encontro com a cônsul-geral do Reino Unido em São Paulo, Joanna Crelin, e a responsável pela área de comércio, Lauren Frater.
Quando o escândalo envolvendo a empresa britânica e o Facebook explodiu, Torreta declarou que estava surpreso. "Eu tomei um susto", disse à Folha. "Nunca vi alguém ter acesso a esses dados [do Facebook]. Também fui pego de surpresa. Eu não tive nunca acesso aos dados que estão dizendo por aí".
Em 17 de março de 2018, ele anunciou a suspensão da parceria: "Era um acordo operacional e deixa de existir, pura e simplesmente assim, não tem mais."
Torreta era considerado peça-chave na estratégia da Cambridge Analytica, segundo afirmou Kaiser a Nix. "Apenas depois de ter avançado nas conversas com André é quando eu consegui encontrar e conversar com políticos, e todo mundo começou a abrir as portas, sempre com ele."
O consultor já havia afirmado que havia sido procurado por um "emissário" da Cambridge em 2016. Não há evidência se Barradas participou da empreitada.
Houve algo com políticos no Brasil?
Fora isso, há poucas evidências sobre contatos com políticos brasileiros.
Ainda que o foco fossem candidatos para as eleições de 2018, que envolvia corridas à presidência, a governos e legislativos estaduais e ao Congresso Nacional, a Cambridge Analytica parecia ter avançado pouco.
Em um convite para uma reunião de acompanhamento sobre contratos em andamento, a empresa cita apenas quatro contatos feitos com prefeitos brasileiros, mas não diz quem eram. Também não há informação sobre se os contratos foram de fato firmados, já que os contatos careciam de resposta.
Para se ter ideia do grau prematuro em que essas negociações estavam, esse mesmo documento trazia outras transações, com empresas e campanhas políticas de todo o mundo.
A Deutsche Telecom, empresa de telecomunicações da Alemanha, ainda iria retomar o contato. A UEFA (União das Associações Europeias de Futebol) estava negociando preço e pedia mais prazo. A empresa Bestway, do Reino Unido, iria mandar a proposta na semana seguinte. A Philip Morris International, do Canadá, também estava na fase de proposta.
A Cambridge Analytica ficou famosa por trabalhar nas campanhas políticas que levaram Donald Trump à presidência dos Estados Unidos e levou o Reino Unido a votar pela saída da União Europeia. Christopher Willy e Brittany Kaiser foram alguns dos funcionários que revelaram como a empresa usou dados extraídos do Facebook por meio de um quiz psicológico para construir abordagens personalizadas para atingir em cheio grupos específicos de eleitores.
Em um email de 15 de junho de 2016, Mark Turnbull adverte, porém, que os clientes deveriam ser orientados sobre o que a Cambridge Analytica poderia e não poderia fazer. Ele diz que o "microdirecionamento comportamental" era algo que não estava disponível para todos os países.
"Seria realmente útil ter um memorando de análise de dados que define os tipos de dados que estamos procurando, onde os encontramos e o que podemos fazer com eles, para podermos explicar claramente a clientes o que provavelmente seremos capazes de fazer por eles e evitar situações em que nos encontramos vendendo o que não podemos oferecer (por exemplo, 'microdirecionamento comportamental')."
O escândalo do Facebook
A consultoria de marketing político Cambridge Analytica esteve envolvida no maior escândalo do Facebook envolvendo o uso indevido de dados de seus usuários em campanhas políticas. O caso explodiu em março de 2018.
Com ajuda de um simples teste de personalidade e curtidas na rede social, a empresa começou a coletar informações pessoais de usuários e de seus respectivos amigos.
Com todos esses dados foi possível traçar o perfil psicológico de mais de 87 milhões de pessoas, que se tornaram potenciais alvos para o recebimento de propagandas eleitorais altamente personalizadas. No Brasil, mais de 443 mil usuários tiveram os seus dados coletados indevidamente.
Após o escândalo, Mark Zuckerberg, presidente-executivo do Facebook, tentou dar inúmeras explicações. Admitiu erros, fez mudanças para tornar tudo mais seguro e tenta outras estratégicas para manter sua empresa no topo. No entanto, a sua imagem e a do grupo Facebook ainda seguem manchadas quando o assunto é a proteção de dados de seus usuários.
Aqui no Brasil, o desdobramento mais recente envolve uma multa de R$ 6,6 milhões ao Facebook determinada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública por conta do compartilhamento indevido de dados de brasileiros.
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